Tive uma infância privilegiada. Vivi dos nove meses aos oito anos e meio perto de Oeiras numa urbanização chamada Alto da Barra. Era formada por um conjunto de vários prédios dispostos em U com campos relvados recheados de árvores no meio. Cada prédio tinha 6 lotes, cada um com 8 andares e dois apartamentos por andar. Eu vivia no bloco A, no lote 5, 1º esquerdo.
Na parte traseira do meu prédio havia um descampado enorme, onde todos os disparates eram possíveis e onde vieram a construir um centro comercial, construção essa que teve a minha decisiva influência, como verão em textos futuros. Para lá do Alto da Barra estava a famosa marginal. A marginal era um instrumento de tortura à margem das convenções de Genebra para todas as pessoas que se metiam nela na linha de Cascais, na esperança de um dia chegar ao emprego, sim, naquele tempo costumávamos ouvir falar de auto-estradas e de vias rápidas mas eram conceitos muito estranhos, como se de mitos urbanos se tratassem.
Do outro lado da marginal estava a felicidade. A felicidade nesses tempos adquiria a forma de uma praia com um pedaço de areia rodeado de rochas, com dois imponentes esgotos, um de cada lado, a vigiar o que algumas centenas de pessoas conseguiam fazer naquele pequeno espaço inundado em porcaria.
Antes de chegar à praia tínhamos que descer umas escadas e antes de chegar a essas escadas passávamos por uma espécie de café/geladaria com uma esplanada enorme. No caminho para essa esplanada havia uma pequena rotunda relvada com uma placa pré 25 de Abril que nos recordava tudo o que era proibido fazer e um pouco mais à frente havia uma piscina da qual também vos falarei. Hoje, o que interessa é ir ao parque infantil, que ficava à direita de quem seguia na direcção do tal esgoto gigantesco com areia no meio.
Conheci muitos parques infantis na minha vida, alguns como criança, outros como criança com mais idade, mas aquele foi sem dúvida o melhor. Quando entrava tinha ao meu lado esquerdo uma construção a imitar um pombal, ou talvez fosse mesmo um pombal do qual os pombos se tinham demitido, talvez por alguma reivindicação laboral. Ao lado direito estava um cavalete que eu insistia em trepar apenas para descobrir que se pode cair sempre de forma diferente magoando partes diferentes do corpo, ao contrário dos gatos. Se andasse em frente passava por umas figuras de ferro retorcidas que davam a um bidon de combustível vazio o aspecto de um cavalo com trissomia XXI, mas a malta nem se importava muito com isso, giro giro era passar as tardes em cima das ditas figuras cavalares a imitar as perseguições a cavalo que víamos no Bonanza. O facto de nunca sairmos do lugar não interessava nada, às vezes trocávamos de cavalo para não serem sempre os mesmos a andar atrás dos outros. Depois dos cavalos estavam os baloiços. Uns pequeninos como se impunha, outros enormes, como se desejava.
A seguir aos baloiços estava uma das extremidades de uma réplica maravilhosa da ponte 25 de Abril, ponte essa que atravessava longitudinalmente todo o parque e nos levava à zona dos escorregas, onde existiam alguns pequenos e 4 deles enormes, aí com uns 10 metros de altura que então pareciam ser quilómetros. Um dia alguém retirou as tábuas que faziam de piso nessa ponte, tendo ficado apenas a armação em ferro. Como devem calcular isso tornou a ponte muito mais perigosa, e como tal, muito mais interessante. Pergunto-me quantas das autoridades daqueles anos ainda estariam presas se a ASAE então existisse, já para não falar do Daniel Sampaio.
A história de hoje, depois desta enorme introdução, é sobre os baloiços. Eu devia ter a minha meia dúzia de anos, ou talvez nem sequer isso, tenho boa memória mas também não exageremos. Não faço a mínima ideia onde estavam os meus pais ou os meus avós. Provavelmente estavam na tal esplanada, mas também não é de excluir a hipótese de eu ter saído do alto da barra para ir ao parque sem ter avisado ninguém, algo que acontecia com mais frequência do que a que os meus pais sonhavam nos seus piores pesadelos. Como de costume estava num dos baloicinhos a treinar essa arte que tinha aprendido há pouco tempo que se baseava em pequenas oscilações no posicionamento das pernas para usar a força gravítica com o objectivo de produzir um movimento pendular, vulgo, andar de baloiço. Enquanto me divertia com isto, olhava de soslaio com uma inveja e admiração brutais para um grupo de miúdos enormes ( 9 ou 10 anos ) que estavam nos baloiços maiores. Esses foram talvez os meus primeiros heróis. Eram grandes, seguros de si. Pouco depois de se sentarem nos baloiços dos crescidos já rasgavam a atmosfera a velocidades estonteantes. Davam gritos orgulhosos quando subiam em direcção ao céu, e quando desciam de novo sabiam que esse recuo era apenas a oportunidade para lançarem uma nova investida. Muitos anos antes de o mundo se ter apaixonado pelo Tom Cruise no Top Gun, já eu era fã desses “ases indomáveis” que ainda tinham a lata de, passado algum tempo a baloiçar se lançarem no ar num voo imparável para aterrar na areia que servia de solo aos nossos sonhos. Como eles eram fortes e audazes, como eu queria tanto ter 10 anos para ser assim.
Mas, nesse dia algo mudou. Fartei-me de esperar e quando eles se foram embora, sim, sempre tive medo de mostrar coragem em público, larguei a segurança do baloicinho e aventurei-me em territórios até então desconhecidos. Com alguma dificuldade nada inesperada sentei-me num dos baloiços grandes e lá vai de mexer as pernas. Não custou tanto como pensava. Passado um bocado já atingia velocidades que nunca antes tinha conhecido. Agarrava-me às correntes como um naufrago a uma bóia e voava e voava como naquela música revolucionária sobre gaivotas livres. O que mais me lembro é da sensação daquela pontada maravilhosa no estômago à medida que desafiava a gravidade em direcção ao infinito. Não queria parar. Aquilo era demais, achei que estava a viver o momento mais importante da minha vida. Entretanto, decidi que mesmo já sem fome queria comer a refeição completa. Estava tudo a correr tão bem mas já que tinha chegado ali, ia até ao fim. Decidi que também queria saltar. Era a conclusão lógica, se conseguia andar no baloiço grande como eles, também conseguiria saltar como eles. Então a meio de uma subida, largo as mãos das correntes e empurro o corpo para a frente. Por leis Físicas que vim a aprender muitos anos mais tarde, em vez de ser impulsionado em frente, fui para cima. O baloiço em vez de se retirar para o seu lugar como forma de homenagem à minha coragem, acertou-me em cheio na nuca, como que para castigar a minha arrogância.
Levantei-me completamente tonto e com uma dor na cabeça como nunca tinha sentido, e apesar de a ter partido já três vezes, também nunca esqueci. Olhei à volta, o parque estava quase vazio. Pelo menos não tinha que suportar a vergonha na presença de outras pessoas. Fui esconder-me em baixo da ponte a chorar (sim, eu fui um puto muito piegas) e depois de ter passado a dor e a vergonha, fui embora com o rabo metido entre as pernas.
Mas voltei. Não sei se no dia seguinte se alguns dias mais tarde. Sei que voltei e mais cedo do que tarde, aqueles baloiços também já eram meus, e sim, aprendi a voar sozinho, e sem marrar com a cabeça no baloiço. A partir daí o problema passou a ser fugir dos meus antigos heróis quando eles apareciam aos urros histéricos a dizer que aqueles baloiços eram deles e não para bebés.
Voltarei com mais histórias. Até já.
PS – Obrigado Neide. A nossa conversa sobre o parque infantil da ilha da Armona foi a causa disto. Beijoca.

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