De regresso ao Algarve depois de uns dias de férias e parei em Porto Peles para jantar. Alguém cuja paixão pela culinária partilho aconselhou-me esta aldeola perdida por perto de Beja e lá fui eu. Porto Peles é literalmente uma aldeola com uma 12 casas e 2 restaurantes. Um dos dois estava no seu fecho semanal, ou seja, tinha 100% de hipóteses de acertar num sítio aberto para jantar.
Lá fui eu ao Toy e devorei avidamente umas presas de porco preto que foram apenas os pedaços de carne mais tenros que comi nos últimos anos. Depois de uma bela refeição regada com um bela garrafinha de 0,375 cl de vinho tinto, encostei-me na cadeira de volta do meu café e a escrever ( a minha sobremesa preferida ). Passado uns bons 15/20 minutos, à medida que o silêncio a que me tinha votado por causa da escrita se começava a tornar ensurdecedor, começo a tomar mais atenção ao que se passava à minha volta e começo a ouvir as conversas. No meio dos 10/12 homens encostados ao balcão, uma voz sobrepoe-se às restantes.
"Mas vocês já viram isto ? Este restaurante está cada vez melhor. Agora até já poetas cá aparecem"
OK, até aqui tudo bem. Lá vou escrevendo mais um pouco.
"Oh Toy, tu já viste isto ? Ai o gajo dum cabrão, se eu escrevesse metade daquilo caiam-se-me os dedos"
Bem, agora as coisas começam a ser um bocado evidentes.
"Oh amigo, ei vocemessê aí do chapéu preto, está a pagar alguma promessa ?"
É mesmo comigo. Levanto a cabeça e vejo o alentejano mais típico do Alentejo. Baixo, barrigudo, pelo menos mais barrigudo do que eu, vestido de preto, com uma boina e uma bigodaça imperial.
"Boa noite. Como está ?"
"Eu bem. Mas vocemessê parece que está a pagar alguma promessa. Como é que consegue escrever tanto? É algum escritor ou algum poeta ?"
"Essa é difícil amigo. Há quem diga que sou uma coisa, há quem diga que sou a outra, há até quem defenda que sou ambas. Apenas gosto de escrever."
"Eh diabo, eu também gosto de tratar da minha horta mas não ando a cavar por prazer."
"Ehehehe (sorrio eu). Boa comparação. Mas eu gosto mesmo de escrever e às vezes nem sequer preciso de grandes motivos."
"Eu acho que a devia convidar para o baile da sua aldeia. Dance com ela um bocadinho que é melhor do que lhe escrever essas folhas todas."
Confesso que não tive resposta para esta. Nem sequer me dei ao trabalho de lhe tentar explicar que a minha aldeia tem 30.000 habitantes. Depois do meu silêncio, ele voltou ao ataque.
"Mas que tanto gosta vocemessê de escrever ?"
"Olhe amigo, gosto de escrever sobre tudo e sobre nada. Gosto particularmente de escrever depois de jantar e, por estranho que lhe possa parecer, para Algarvio, gosto muito de escrever no Alentejo e sobre o Alentejo"
"Um algarvio aqui ? Oh Toy o teu restaurante está a ficar conhecido ! E o quê que vocemessê escreve sobre o Alentejo ? Se é que posso perguntar, claro."
"Escrevo sobre uma terra que a natureza fez quase perfeita e depois tirou-lhe a água, como que para mostrar que a perfeição não passa de um ideal inacabado. Escrevo sobre um povo cansado e torturado que parece vencido mas não rendido. Sei lá, escrevo muitas coisas."
Silêncio. Não só o dele mas o de todos a não ser da TV. Durante uns 15 segundos tive toda a eternidade para pesar o que tinha dito e para pensar se tinha estado muito bem ou se tinha cometido uma das minhas olímpicas argoladas. Finalmente ...
"Eu bem te disse Toy, esta noite tens um poeta no teu restaurante. Sai um abafadinho ali para o Algarvio."
Qualquer esperança de solidão que ainda pudesse ambicionar terminou naquele momento. Não sei bem qual a definição de "abafadinho" mas depois do primeiro veio o segundo e depois desses dois, outros três. Passei de tipo esquisito sentado num canto a escrever a velho amigo de olivais e cearas. Falámos de seca e de chuva, de calor e de geada, dos mares infinitos que banham o Algarve e do sol abrasador que queima o Alentejo. Fui aceite e adoptado, gozado e acarinhado por um grupo de homens que nunca vi e dificilmente voltarei a ver.
Depois de muitos protestos deles, fugi do restaurante e de Porto Peles. Os meus planos de chegar a casa ainda hoje foram torpedeados por meia dúzia de abafadinhos e por uma dúzia de alentejanos. Conduzi com todo o cuidado do mundo até Beja e aluguei um quarto na pousada da juventude de onde agora escrevo. Amanhã regresso, com o estômago e a alma preenchidos.
Citando um anúncio de TV que anda na moda:
"Seria possível existir Portugal sem o Alentejo ?" Não sei. Talvez fosse. Mas não seria a mesma coisa.