Em jeito de balanço, há algumas coisas que queria dizer sobre a participação de Portugal no mundial de futebol.
1 – Já não tenho muita paciência para selecções de futebol, confesso. Não sei bem quando começou o divórcio nem quando o mesmo se oficializou, sei que o meu clube me faz vibrar muito mais do que a selecção. Tempos houve em que as selecções eram o conjunto dos nossos melhores jogadores. A globalização futebolística ainda não tinha atingido a dimensão actual e quando olhávamos para a convocatória dos seleccionados, quase todos eles jogavam em Portugal além do facto de serem mesmo todos Portugueses. Hoje isso mudou. Nem venham com a conversa da xenofobia porque quem me conhece sabe que não tenho uma única molécula de ódio a estrangeiros no corpo, mas há coisas em que não faço compromissos. Liedson, Pepe e Deco são Brasileiros, ponto final. Como eles, há uma profusão de outros jogadores que não jogam no país de origem, tendo optado por outros onde encontraram mais oportunidades. O fenómeno generalizou-se e, em vez de selecções nacionais cada vez há mais selecções de naturalizados. Assim, não contem com o meu apoio para estas provas.
2 – Carlos Queiroz é uma vítima clara daquilo que é conhecido como o “princípio de Peter”. Segundo essa sábia fórmula, uma pessoa por vezes desempenha tão bem o seu papel que se convence que pode dar o salto em frente. Quando o faz, espalha-se porque foi incapaz de perceber que o seu nicho era no degrau inferior. Queiroz foi um excelente treinador de camadas jovens, um excelente adjunto e planificador de treinos, como treinador principal é uma daquelas nódoas que nem com benzina saem. Falhou no Sporting quando tinha o melhor plantel de Portugal, falhou no Real de Madrid com mais estrelas que o planetário de Lisboa, falhou uma vez na selecção e agora cumpriu o seu cruel destino mais uma vez. Queiroz é medroso, joga na expectativa do que faz o adversário, não arrisca e é incapaz de incentivar um leão esfomeado a atacar uma gazela com as patas partidas. Portugal nunca teve nos dois últimos anos uma consistência de jogo, nunca mostrou querer ganhar sem ser à custa da inspiração momentânea dos seus jogadores. Neste contexto alguém se surpreende de termos sido eliminados pela campeã europeia nos 1/8 de final ? Eu surpreendo-me por termos lá chegado.
3 – Que dizer do CR ? Bem, que não fiquem dúvidas que o considero um excelente jogador de futebol e um predestinado com a bola nos pés. Pronto, agora posso passar ao resto. O tipo é vaidoso e arrogante, o que pode ser à vontade, mas tem que estar preparado para lhe serem cobrados resultados. Mourinho diz o que quer quando quer e no fim quem não gosta, ouve e cala porque ele ganha, se Ronaldo quiser ter direito ao mesmo, que ganhe. Muitos podem defendê-lo dizendo que Portugal espera muito dele. É verdade que espera, e esse sentimento foi cultivado e fomentado por ele. Quando um jogador de futebol escolhe fazer do seu nome uma marca e decide que tem que aparecer sempre nas notícias seja de que forma for, tem que arcar com as consequências que essa mediatização traz. Ronaldo decidiu que a sua carreira não passava só pelos relvados, decidiu que também tinha que passear pelas revistas cor-de-rosa como uma mariposa metrossexual a arranjar namoradas novas todas as semanas, decidiu que havia de chegar ao estágio da selecção de helicóptero. Mais uma vez estava no seu direito, agora quando promete explodir no mundial, quando afirma ser o maior do mundo e arredores, que cumpra, caso contrário faz figura de urso. Ponha os olhos no Messi que dispensa toda essa publicidade e faz jogos de sonho, quer no clube, quer na selecção. Outra coisa, Ronaldo não sabe reagir a contrariedades. Basta algo correr mal para mostrar o puto azeiteiro que ainda é. Foi uma vez no estádio da Luz a ofender os adeptos, foi ontem de novo a cuspir na direcção da câmara televisiva. Não podemos ter como capitão alguém que reage como ele reagiu. É na derrota que se vê o carácter dos homens e este tipo já mostrou o carácter dele, e mais do que uma vez.
4 – O caso Nani não passou de outra palhaçada inominável. Segundo percebi, ele lesionou-se num ombro em Portugal, foi para a África do Sul, jogou 90 minutos contra Moçambique e depois descobriram que não estava apto nem era recuperável para o mundial. OK, eu também gosto muito de ficção científica mas não a vendo aos outros como verdade. Espero que tenhamos agora direito a uma explicação mais real do que aconteceu.
5 – A asneira toda começou quanto a mim na convocatória. Não percebo alguns nomes e nunca vou compreender a ausência de outros. Paulo Ferreira e Miguel estão ou em baixo de forma ou não jogaram quase nada durante o ano. Onde estava o João Pereira e o Rúben Amorim (que acabou por ir para se lesionar) ? Não faziam falta, o Ricardo Costa podia fazer a posição com a proficiência que vimos ontem. Deco quase não jogou este ano, e mesmo aceitando que é um génio que pode resolver jogos, onde estavam os substitutos para a sua forma intermitente ? João Moutinho e Carlos Martins mereciam o bilhete de ida e Nuno Assis talvez não destoasse muito. Como é que se gastou uma vaga com um Pepe que não se sabia se recuperava e tinha-se a certeza que se recuperasse não teria ritmo de jogo ? Enfim, contradições a mais para quem um dia disse que com ele jogavam sempre os melhores e na melhor forma.
6 – Para a despedida fica o balanço. 4 jogos, uma vitória a uns tristes e mortos de fome que jogaram aberto connosco, 2 empates e uma derrota. Para mim é manifestamente pouco. Elogiam a nossa defesa que só sofreu um golo, eu lamento só termos marcado à Coreia do Norte. De resto, sobram as histórias mal contadas, as bocas mandadas para serem corrigidas depois, o costume. Lá voltamos com as mãos a abanar e envoltos no nevoeiro de intrigas do costume. Deve dar para aguentar as rotativas dos jornais por uns tempos, pelo menos até começarem os jogos de pré-época do Benfica e voltarmos a ver futebol a sério.


Há dias estranhos. Estou a falar a sério, há dias em que quase nada faz sentido a não ser a certeza que o tempo vai continuar a passar e vai levar-nos para outro tempo qualquer. Ontem foi um desses dias.


Cheguei a casa sabendo que não ia lá ficar, saí sabendo que não tinha para onde ir. Como costume nestas situações, acabei nas margens da Ria Formosa. Subi do T à marina, desci no sentido inverso. Andei, dancei e nadei junto à Ria e, depois de um pôr do sol inebriante, decidi que era dia de me estragar com mimos. Fui a um restaurante Indiano cá do burgo e sentei-me na esplanada à espera de uma refeição.


Fui atendido por um Indiano simpático e porreiro. Depois de pedir a minha galinha grelhada com cebola e pimento recostei-me na cadeira a assistir à montagem dos festejos do S Pedro que se iam realizar no largo em frente à esplanada do restaurante.


Chega uma empregada morena com a minha taça de vinho e com uma cesta de pão de alho. Três dos seus dedos vão estrategicamente colocados dentro do cesto, com uma das suas unhas a roçar eroticamente numa das fatias. É óbvio que não vou comer isso, mas hoje também não estou com paciência para lhe esfregar o livro de reclamações no seu sorriso lindo.


Entretanto no largo, um tipo com um aspecto horrível faz testes de som. Coloca um CD do Quim Barreiros e, perante uma acéfala salva de aplausos, eleva o volume até ao expoente do desespero. Começa o meu inferno. Depois do inevitável snif no bacalhau da Maria, vem um gajo qualquer com voz de tuba desafinada a ameaçar lamber uma coisa qualquer a uma emigrante, espero que fosse o passaporte. De seguida continua com o Zé Cabra a explicar que deixou tudo por ela, incluindo a voz e a letra da música. Tudo é mau demais para ser real. Estou num filme do Fellini, produzido pelo João César Monteiro e com banda sonora do Zé Cabra.


Chega a comida. Talvez agora tudo melhore um pouco. Mas não, este foi apenas mais um dos meus pensamentos imbecilmente optimistas. Três putos invadem o espaço nas suas bicicletas a tocar vuvuzelas ao ritmo do desvario. Juntos, com a música pimba por trás, soam a uma manada de rinocerontes fêmea com cio a ser violadas por uma matilha de caniches maníaco-depressivos. Fui barbaramente extirpado da minha terra natal e enxertado no sétimo círculo do inferno. Devoro a comida à velocidade dos movimentos peristálticos do meu esófago e chamo a morena para recolher o muito que sobrou e para me trazer um café para que possa fugir para longe. No auge da sua boa vontade ela recolhe a travessa do frango, bem como a do arroz que transporta num ângulo de fazer corar de vergonha a torre de Pisa e deixa atrás de si um rasto que torna a experiência de Hensel e Gretel numa pífia tentativa de cartografar um caminho. Volta. Segura o cesto do pão intocado e ao tentar agarrar o copo de vinho quase cheio com as suas garras disformes, entorna-o na mesa e por cima de mim. Ao som da mais medonha pimbalhada e dos três putos a guinchar como se fossem anjos do apocalipse deito-lhe um olhar de puro ódio, temperado por ira e polvilhado por bocadinhos de raiva assassina. Consigo balbuciar um “não se preocupe, azares acontecem” que soa a “oh sua burra de merda, desaparece-me da frente antes que te foda o focinho à biqueirada”. Afasta-se. Enquanto sinto a tensão arterial a entrar na ionosfera, volto a concentrar-me no espetáculo Dantesco que se desenrola no largo.


Entretanto algo muda. Um dos javardos atrapalha-se, a bicicleta foge ao controle da sua vontade, dança em desequilíbrio  e ambos se espalham no espaço residual entre duas mesas. Nunca saberei descrever a beleza ergonómica daquele movimento, nunca serei capaz de citar uma lei física que explique como ele deu origem à sequência infindável de ocorrências que se seguiram, como se uma peça de dominó empurrasse inexoravelmente as restantes em direcção à eternidade.


A bicicleta estatela-se, o puto cai, a vuvuzela voa, as mesas tremem. Numa delas a mesa de mistura dança mal humorada como se de um protesto laboral se tratasse, o leitor de CDs, esse, entrega-se à inevitabilidade da força gravítica e beija a calçada num estertor de paixão e de morte. Na mesa do lado uma pilha de CDs mergulha quixotescamente em direcção ao instrumento que estava preparado para lhes dar sentido. O puto está no chão. Tem por cima a bicicleta, bem como uma miríade de CDs, que num strip tease final se despiram das suas capas de plástico, por baixo está o leitor, agora reduzido ao silêncio. Num dos cantos do largo, levanta-se uma mulher que não tem mais de 40 anos e não aparenta menos de 60. Desloca-se com a graciosidade de uma retroescavadora e, ao chegar junto do puto choroso, aplica-lhe com a precisão cirúrgica de uma motosserra um par de bofetadas que, se houvesse justiça neste país, seriam classificadas pelo IPPAR como património cultural. Ao mesmo tempo, do mesmo local, levanta-se uma velhota com idade para ser tia-avó do Matusalém e desata a xingar os outros dois putos num idioma incompreensível para quaisquer ouvidos humanos.


A mãe berra, a velha rosna, o dono da aparelhagem lamenta-se, os ranhosos dos putos choram. Eu, bem, eu rio interiormente com uma alarvidade sádica. O leitor de CDs calou-se, as vuvuzelas foram sonoramente exiladas, os putos foram chorar para o beco. Chega o meu café ao mesmo tempo que o homem do som se rende às evidências e liga o rádio. Ouço a parte final do “have you seen my baby” dos Rolling Stones, de seguida sou brindado pelo “Russians” do Sting e, enquanto fumo um cigarro que me sabe a redenção, o Tom Petty canta-me o “cuts you out”. Fui trazido de volta à realidade depois de uma travessia por um deserto de horrores.


Pago, despeço-me do Indiano simpático e da morena desastrada. Faço-me ao caminho que ainda vou andar quatro ou cinco quilómetros antes de voltar a casa. Vou alegre e sorridente, a vida acabou por me fazer justiça. Como diz o conhecido ditado popular, “uma vuvuzela toca direito por notas tortas”.

Nó Górdio

Reza a lenda que um rei da Ásia Menor morreu sem deixar descendentes. Reza a lenda que um Oráculo qualquer previu que o futuro rei chegaria a conduzir um carro de bois. Segundo a mesma lenda já muito rezada, esse rei, de nome Górdio, amarrou o seu carro de bois a uma coluna, para que ninguém se esquecesse das suas origens humildes. A mesma lenda, já transformada numa ladaínha, diz que o tal de Górdio morreu sem descendentes (que raio faria aquela gente para se divertir ?) e que o Oráculo do costume previu que a Ásia Menor só voltaria a ter um rei quando alguém conseguisse desatar o nó de Górdio. Passados muitos anos esta história foi conhecida por Alexandre, o Grande. Segundo a tal lenda, o mesmo deslocou-se à dita cidade e, ao ver o nó dado muitos anos antes (nem quero imaginar em que estado estariam os bois), sacou da sua espada, cortou o nó, e reinou na Ásia Menor, tal como nos outros 378 territórios e países que conquistou, e sem carros de boi como adereços.
Moral da história, ou melhor, moral da lenda, o Nó Górdio fica como um exemplo de como é possível resolver problemas complicados de uma forma simples. Como devem calcular, é uma das minhas lendas preferidas, eu que tenho como uma de muitas alcunhas, "o simplificador implacável".
Detesto complicar coisas que são naturalmente simples quase tanto como adoro simplificar coisas aparentemente complicadas. Acho que vem dos tempos da matemática no ensino secundário em que a melhor coisa que me podiam fazer era pedir para simplificar funções. Continuo a considerar o acto de reduzir ao mesmo denominador para cortar, mais do que uma manha matemática uma atitude perante a vida.
O nosso dia-a-dia é como uma equação com dezenas ou centenas de incógnitas. Aceito isto, é natural que vivamos no reino do caos já que vivemos rodeados de outras pessoas que têm os seus próprios caminhos, os seus próprios sonhos, os seus muito próprios medos. Respeito isso, não me peçam é para submeter a minha simplicidade a confusões alheias.
Mas afinal de contas, serve isto tudo para quê ? Para vos dizer que tenho à minha frente um nó górdio que não ata nem desata e estou com dúvidas sobre o que fazer a seguir (sim, sou dos que têm dúvidas de vez em quando e se pensam que sou fraco ou inseguro por isso, peguem nos vossos rabiosques e desapareçam-me do blog e da vista seu bando de otários(as)). Dava-me jeitinho um conselho sabem, não é que o vá seguir, mas pelo sim pelo não sabia-me bem.
Olhem, deixem lá, vocês têm razão. Vou mas é afiar a espada.

Rostos

Li esta manhã no Diário de Notícias uma citação de Abbas Kiarostami que não me sai da cabeça. Segundo ele, "Os rostos são as paisagens mais dramáticas de todas".
Não discuto. Não estou em posição de o fazer, e, mesmo que estivesse, não sou ninguém para pôr em causa afirmações deste calibre, baseadas claramente em experiências de vida que não conheço nem compreendo. No entanto, o Kiarostami que me perdoe, mas direi mais algo sobre o assunto. E fá-lo-ei por um único e simples motivo, o teu rosto. Já que tenho uma arma poderosa para embirrar com um citação que, como escrevi há segundos atrás, não ia discutir, nada como usar essa arma e esperar que a minha contradição passe despercebida.
O teu rosto é simples. Não tem nada de exuberante nem de espampanante, tal como as melhores obras de arte, é nos pormenores que se reconhece. Não é demasiadamente redondo nem angularmente quadrado. Não é esguio e comprido, nem reduzido e delgado. É apenas o teu, e sinceramente, não poderia ser de mais ninguém, tal como não poderias ter outro diferente. Costumo perder-me em segredo nos teus cabelos. São longos mas não demasiado compridos, mais do que encaracolados, são simplesmente revoltos. Por mais que os tentes pontualmente esticar, não funciona. És daquelas pessoas cuja alma se apropriou de partes do corpo, tendo o processo começado exactamente pelos teus cabelos. Transmitem muito mais de ti do que as tuas palavras. Não são só revoltos, são livres, enérgicos, por vezes até caóticos, mas vê-los descer dessa tua cabeça brilhante, vê-los acariciar o teu rosto com essa melena branca envergonhada é mais do que estou habituado a pedir quando peço por momentos de simples beleza.
Depois há as tuas sobrancelhas, adoro-as. Essas sim dão bem nas vistas. Parecem traçadas a carvão num quadro de óleo. Firmes, imponentes, por vezes dá a sensação que foram cavadas como uma trincheira. São elas as principais responsáveis pelo tal ar de intimidação que dizes transmitir às pessoas. Para mim são apenas um escudo. São um escudo protector para os teus olhos, que de tão naturalmente castanhos, só se afirmam pelo olhar. Que seria desse teu olhar cheio de ternura envergonhada se não se pudesse esconder atrás das tuas sobrancelhas ? Que imagem conseguirias passar de ti mesma se todas as pessoas te conseguissem olhar bem no fundo do teu olhar sem que nada te protegesse ? Considero-me um privilegiado por fazê-lo frequentemente, mas sinceramente mereço-o. O teu olhar é o calcanhar de Aquiles de toda a tua fortaleza. Não foi fácil percebê-lo, mas foi lindo descobri-lo. Todas as pessoas num dado momento deixam que venha à superfície o que têm de mais valioso guardado num cofre mágico a que chamam de coração. Nem todas têm contudo a noção que o fazem, nem todas conseguem compreender que não é possível esconder segredos para sempre. Os teus, é através do olhar que se revelam, e quando isso acontece, só apetece mergulhar, viver, sonhar e morrer nesse olhar.
Podia ainda falar da tua boca e da forma como promete fontes de água inesqueciveis para quem a beber. Podia falar do teu nariz que goza com o conceito Aquilino das Deusas Gregas, podia ainda refugiar-me nas tuas orelhas onde tantas vezes quero entregar palavras que só para ti inventei mas não o vou fazer agora. Já só consigo pensar nas tuas rugas de expressão que se espalham concêntricas na tua face quando sorris. São responsáveis por esses risos e sorrisos abertos e envolventes que conseguem inundar uma sala, com jeitinho, aposto que conseguiriam inundar uma vida.
É como te digo, o teu rosto é uma daquelas obras de arte que sendo singelo no todo é magnífico nas várias partes que o constituem. Como já disse, não sou ninguém para pôr em causa a citação de Kiarostami, mas, ninguém me pode contradizer quando eu afirmar que, se ele te conhecesse, a citação teria sido : "Os rostos são as paisagens mais sublimes de todas".

cavaquices

Como se devem ter apercebido, não fui um grande fã de José Saramago. Independentemente deste facto, reconheço-lhe uma grande qualidade literária e não tenho o mínimo problema em assumir que foi um homem que elevou e dignificou o nome de Portugal. Neste sentido só posso deixar um comentário à ausência do Presidente da República durante as exéquias do escritor prémio nobel. Cavaco é um vulgar palerma, um triste ressabiado que usa o cargo máximo da nação para acertos de conta pessoais. Tem uma tacanhez provinciana, uma ausência de dimensão de estado e o seu consulado é um escarro nas paredes do palácio de Belém. O homem saiu de Boliqueime mas Boliqueime nunca saiu dele. Houvesse uma figura de peso a enfrentá-lo nas presidenciais e ia para o caixote do lixo da história mais depressa do que engolia uma fatia de bolo rei.

A banheira de Arquimedes

A ciência também tem os seus mitos. Não basta o ritual do método científico que pouco significa, como também existem histórias quase mitológicas que funcionaram e funcionam como inspiração para gerações e gerações de cientistas.
Arquimedes pertence a esta galeria. Foi um matemático, astrónomo e inventor que viveu em Siracusa, então uma cidade Grega. Arquimedes foi o primeiro a calcular o número Pi, abriu as portas à hidrostática e à mecânica de fluídos e criou o princípio das alavancas, na sequência do qual produziu a famosa citação "Dêem-me um ponto de apoio que eu levantarei o mundo", citação essa hoje aplicada por José Mourinho sob a forma de "Dêem-me uma equipa de futebol que eu levantarei uma taça".
Agora a história de Arquimedes que virou um verdadeiro mito passou-se quando lhe foi colocado um problema quase insolúvel. Um manda chuva lá do sítio pediu-lhe que descobrisse uma forma de se certificar que a coroa em ouro que tinha encomendado era mesmo 100% ouro, ou se estava mafiada por metais mais baratuchos. Conta-se que um belo dia estava Arquimedes na sua banheira quando foi atingido pelo relâmpago da inspiração, ao que saltou banheira fora e desatou a correr nu pelas ruas de Siracusa aos berros "EUREKA, EUREKA". Este mito passa-nos a ideia que as inovações e descobertas científicas dependem muito da inspiração do momento, como se num instante mágico tudo se resolvesse nas esquinas perdidas das nossas sinapses cerebrais, como se raios de luz invadissem imparavelmente o caos de escuridão em que nos encontrávamos. Hoje em dia, tenho como opinião que os avanços e descobertas científicas dependem muito mais de planificação, perseverança, capacidade de resistência ao falhanço e estoicismo para aguentar bolsas congeladas há quase 10 anos, bem como total ausência de protecção social de que padecem os nossos jovens cientistas. É claro que é confortante e inspirador este mito. Conforta pensar que num momento tudo se pode desbloquear, e, conforta ainda mais, pelo menos numa ou duas dúzias de casos que conheço, imaginar jovens cientistas a correr nuas pelos campus universitários a gritar "EUREKA, EUREKA".
A realidade é que o mito de Arquimedes focado no final, na resolução do problema tende a fazer-nos esquecer que o processo, o caminho para lá chegar, esse sim é que é fundamental. Em última análise, preocupamo-nos demasido com o fim e tendemos a descurar o meio, o que torna tudo o resto possível.
Afinal consegui descobrir isto.
EUREKA !


Tive uma infância privilegiada. Vivi dos nove meses aos oito anos e meio perto de Oeiras numa urbanização chamada Alto da Barra. Era formada por um conjunto de vários prédios dispostos em U com campos relvados recheados de árvores no meio. Cada prédio tinha 6 lotes, cada um com 8 andares e dois apartamentos por andar. Eu vivia no bloco A, no lote 5, 1º esquerdo.
Na parte traseira do meu prédio havia um descampado enorme, onde todos os disparates eram possíveis e onde vieram a construir um centro comercial, construção essa que teve a minha decisiva influência, como verão em textos futuros. Para lá do Alto da Barra estava a famosa marginal. A marginal era um instrumento de tortura à margem das convenções de Genebra para todas as pessoas que se metiam nela na linha de Cascais, na esperança de um dia chegar ao emprego, sim, naquele tempo costumávamos ouvir falar de auto-estradas e de vias rápidas mas eram conceitos muito estranhos, como se de mitos urbanos se tratassem.
Do outro lado da marginal estava a felicidade. A felicidade nesses tempos adquiria a forma de uma praia com um pedaço de areia rodeado de rochas, com dois imponentes esgotos, um de cada lado, a vigiar o que algumas centenas de pessoas conseguiam fazer naquele pequeno espaço inundado em porcaria.
Antes de chegar à praia tínhamos que descer umas escadas e antes de chegar a essas escadas passávamos por uma espécie de café/geladaria com uma esplanada enorme. No caminho para essa esplanada havia uma pequena rotunda relvada com uma placa pré 25 de Abril que nos recordava tudo o que era proibido fazer e um pouco mais à frente havia uma piscina da qual também vos falarei. Hoje, o que interessa é ir ao parque infantil, que ficava à direita de quem seguia na direcção do tal esgoto gigantesco com areia no meio.
Conheci muitos parques infantis na minha vida, alguns como criança, outros como criança com mais idade, mas aquele foi sem dúvida o melhor. Quando entrava tinha ao meu lado esquerdo uma construção a imitar um pombal, ou talvez fosse mesmo um pombal do qual os pombos se tinham demitido, talvez por alguma reivindicação laboral. Ao lado direito estava um cavalete que eu insistia em trepar apenas para descobrir que se pode cair sempre de forma diferente magoando partes diferentes do corpo, ao contrário dos gatos. Se andasse em frente passava por umas figuras de ferro retorcidas que davam a um bidon de combustível vazio o aspecto de um cavalo com trissomia XXI, mas a malta nem se importava muito com isso, giro giro era passar as tardes em cima das ditas figuras cavalares a imitar as perseguições a cavalo que víamos no Bonanza. O facto de nunca sairmos do lugar não interessava nada, às vezes trocávamos de cavalo para não serem sempre os mesmos a andar atrás dos outros. Depois dos cavalos estavam os baloiços. Uns pequeninos como se impunha, outros enormes, como se desejava.
A seguir aos baloiços estava uma das extremidades de uma réplica maravilhosa da ponte 25 de Abril, ponte essa que atravessava longitudinalmente todo o parque e nos levava à zona dos escorregas, onde existiam alguns pequenos e 4 deles enormes, aí com uns 10 metros de altura que então pareciam ser quilómetros. Um dia alguém retirou as tábuas que faziam de piso nessa ponte, tendo ficado apenas a armação em ferro. Como devem calcular isso tornou a ponte muito mais perigosa, e como tal, muito mais interessante. Pergunto-me quantas das autoridades daqueles anos ainda estariam presas se a ASAE então existisse, já para não falar do Daniel Sampaio.
A história de hoje, depois desta enorme introdução, é sobre os baloiços. Eu devia ter a minha meia dúzia de anos, ou talvez nem sequer isso, tenho boa memória mas também não exageremos. Não faço a mínima ideia onde estavam os meus pais ou os meus avós. Provavelmente estavam na tal esplanada, mas também não é de excluir a hipótese de eu ter saído do alto da barra para ir ao parque sem ter avisado ninguém, algo que acontecia com mais frequência do que a que os meus pais sonhavam nos seus piores pesadelos. Como de costume estava num dos baloicinhos a treinar essa arte que tinha aprendido há pouco tempo que se baseava em pequenas oscilações no posicionamento das pernas para usar a força gravítica com o objectivo de produzir um movimento pendular, vulgo, andar de baloiço. Enquanto me divertia com isto, olhava de soslaio com uma inveja e admiração brutais para um grupo de miúdos enormes ( 9 ou 10 anos ) que estavam nos baloiços maiores. Esses foram talvez os meus primeiros heróis. Eram grandes, seguros de si. Pouco depois de se sentarem nos baloiços dos crescidos já rasgavam a atmosfera a velocidades estonteantes. Davam gritos orgulhosos quando subiam em direcção ao céu, e quando desciam de novo sabiam que esse recuo era apenas a oportunidade para lançarem uma nova investida. Muitos anos antes de o mundo se ter apaixonado pelo Tom Cruise no Top Gun, já eu era fã desses “ases indomáveis” que ainda tinham a lata de, passado algum tempo a baloiçar se lançarem no ar num voo imparável para aterrar na areia que servia de solo aos nossos sonhos. Como eles eram fortes e audazes, como eu queria tanto ter 10 anos para ser assim.
Mas, nesse dia algo mudou. Fartei-me de esperar e quando eles se foram embora, sim, sempre tive medo de mostrar coragem em público, larguei a segurança do baloicinho e aventurei-me em territórios até então desconhecidos. Com alguma dificuldade nada inesperada sentei-me num dos baloiços grandes e lá vai de mexer as pernas. Não custou tanto como pensava. Passado um bocado já atingia velocidades que nunca antes tinha conhecido. Agarrava-me às correntes como um naufrago a uma bóia e voava e voava como naquela música revolucionária sobre gaivotas livres. O que mais me lembro é da sensação daquela pontada maravilhosa no estômago à medida que desafiava a gravidade em direcção ao infinito. Não queria parar. Aquilo era demais, achei que estava a viver o momento mais importante da minha vida. Entretanto, decidi que mesmo já sem fome queria comer a refeição completa. Estava tudo a correr tão bem mas já que tinha chegado ali, ia até ao fim. Decidi que também queria saltar. Era a conclusão lógica, se conseguia andar no baloiço grande como eles, também conseguiria saltar como eles. Então a meio de uma subida, largo as mãos das correntes e empurro o corpo para a frente. Por leis Físicas que vim a aprender muitos anos mais tarde, em vez de ser impulsionado em frente, fui para cima. O baloiço em vez de se retirar para o seu lugar como forma de homenagem à minha coragem, acertou-me em cheio na nuca, como que para castigar a minha arrogância.
Levantei-me completamente tonto e com uma dor na cabeça como nunca tinha sentido, e apesar de a ter partido já três vezes, também nunca esqueci. Olhei à volta, o parque estava quase vazio. Pelo menos não tinha que suportar a vergonha na presença de outras pessoas. Fui esconder-me em baixo da ponte a chorar (sim, eu fui um puto muito piegas) e depois de ter passado a dor e a vergonha, fui embora com o rabo metido entre as pernas.
Mas voltei. Não sei se no dia seguinte se alguns dias mais tarde. Sei que voltei e mais cedo do que tarde, aqueles baloiços também já eram meus, e sim, aprendi a voar sozinho, e sem marrar com a cabeça no baloiço. A partir daí o problema passou a ser fugir dos meus antigos heróis quando eles apareciam aos urros histéricos a dizer que aqueles baloiços eram deles e não para bebés.
Voltarei com mais histórias. Até já.
PS – Obrigado Neide. A nossa conversa sobre o parque infantil da ilha da Armona foi a causa disto. Beijoca.

Os três mosqueteiros

Não vou falar do fabuloso romance do Alexandre Dumas, nem das suas inúmeras sequelas. Não vou sequer falar do Dartacão que animou as tardes da minha infância. Vou falar apenas de três pessoas, aliás, de duas que fazem parte de um grupo de três.

Somos amigos, apenas isso. Escrevo isto com a ligeireza de quem por um momento se esquece que pode haver algo mais forte do que a amizade. Conhecemo-nos há muitos anos. Há tantos que nem sequer sei se quero contar. Não nos vemos diariamente, não temos aquela lidação intensiva que muitos pensam ser condição sine qua none para se reclamar uma relação como de amizade. Temos apenas uma rotina em comum, um encontro anual em Olhão no festival do marisco.

Ultimamente tivemos uma grande ajuda que veio pela forma do Facebook, essa poderosa rede social de quem muitos falam bem e muitos outros falam mal. Por um passe de engenharia informática universalista, passámos a estar juntos todos os dias. Conseguimos recuperar a oportunidade de saber a cada minuto o que se passa com cada um, voltámos a descobrir quase à velocidade do pensamento o que estamos a passar, as músicas que queremos ouvir, os poemas que nos apetece recitar, as pessoas que ousamos amar.

Mas afinal quem são estes três artistas que por aqui andam a descobrir-se e redescobrir-se em direcção ao infinito ? Bem, um sou eu. Já me conhecem, não me vou descrever porque detesto falar de mim, como estão cansados de saber. Além disso, o assunto não é muito interessante, sou o vulgar totó que todos conhecem. Agora em relação aos outros dois, aí merece perder algum tempo.

O Nuno é um herói. Não estou a gozar, é um daqueles homens que estamos habituados a conhecer nos livros de histórias e nos filmes épicos. É um profundo idealista que, apesar de ter o corpo em chagas de batalhas e derrotas passadas, continua a lutar, como se nada mais soubesse fazer. O Nuno tem a coragem típica do desespero, ataca sonhos e objectivos com uma garra estranha para os dias que correm e, nem sempre, se dá ao trabalho de se proteger do que possa correr mal. Se D Quixote voltasse à existência por um fabuloso passo de mágica, seria uma pálida caricatura do meu Amigo Nuno Pereira. Esse gajo limitou-se a carregar sobre moinhos depois de comer uns cogumelos manhosos, o Nuno desafiaria exércitos temperados pelo fogo do inferno com uma rosa nas mãos e um sorriso nos lábios. Nele há acima de tudo vontade. Uma vontade inebriante de conquistar o impossível, uma força de vontade que se alimenta de derrotas passadas, uma entrega que só pode ser descrita por aqueles e aquelas que um dia foram capazes de se deitar à sombra da segurança que ele tanto tenta oferecer a quem ama. Sim, porque em última análise, depois de tudo ter sido pesado, analisado e escalpelizado, é o Amor a força que o impulsiona. O Nuno é um dos homens mais perigosos que conheci na vida. Ele é perigoso porque acredita firmemente no que diz, ele diz sinceramente o que sente e sente absurdamente aquilo por que luta.

Depois ainda há a Sandra. Para a Sandra é ainda mais difícil arranjar adjectivos. Ela é o elemento aglutinador deste nosso grupo informal. É a verdadeira líder, a voz da racionalidade quando ela faz mais falta. É claramente a mais inteligente de nós, o que não quer dizer que sinta menos do que nós, muito pelo contrário. A Sandra navega pela vida sem a intensidade das nossas cargas suicidárias de cavalaria, ela consegue estar presente de uma forma menos emotiva, mas nunca menos emocional. Ela consegue manter e mostrar um rumo quando tudo à nossa volta parece estar perdido. Nós podemos ser o vento que impele as velas ou a força que faz mover os remos, mas ela é a bússola e o astrolábio que nos dão o rumo. Por vezes podemos vê-la calma e quase impassível perante situações de risco ou de stress, e nesses momentos só quem não a conhece é incapaz de ver no brilho dos seus olhos o fogo que lhe arde no coração. A minha querida Amiga Sandra Paulo pode por vezes parecer feita de gelo mas é uma daquelas estátuas de fogo esculpidas nas entranhas da Terra.

Juntos somos perfeitos porque desenvolvemos uma extraordinária capacidade de nos abastecermos uns aos outros do que precisamos para carregar aos ombros o peso dos dias. Um partido político juntou-nos há uns anos atrás, mas o que nos uniu é bastante mais forte do que isso. São anos de experiências, de partilhas, de risos e lágrimas, de euforias e neuras partilhadas. Há uma miríade de momentos que foram eternizados porque partilhados. Há uma infinidade de experiências que contribuíram para fazer de nós quem somos, mas que, por partilhadas, fizeram deste grupo uma irmandade rara e valiosíssima.

Hoje sei que posso arriscar. Sei que posso perder, sofrer, sei que por muito mal que esteja, os outros dois estarão comigo. À distância de um click, à velocidade de um pensamento. Sei, e eles também o sabem, que tenho uma rede para me amparar das quedas, uma bóia para me salvar do naufrágio. Tenho no Nuno a força, a garra e a determinação que me lembra que a força de vontade, a perseverança e o Amor podem mudar o mundo. Tenho na Sandra a razão para travar os meus mais entusiásticos impulsos e o fogo que me vai aquecer quando o frio da derrota me invadir todos os poros da alma.

Tenho-os comigo e eles têm-me para si próprios. Enquanto eles ficarem, eu não saio. Enquanto eles existirem, eu não desapareço.

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