Bracara Augusta

1h50. Depois de uns metros de travagem, o comboio pára. Abrem-se as portas, um frio medonho rasga-me os poros já adormecidos pelo sono.
Rezam as lendas, acompanhadas por alguns factos clínicos, que um dos sintomas frequentes da hipotermia é o adormecimento. Como se o frio servido em excesso fosse desligando um por um todos os nossos interruptores até que a morte avance lenta e inexorável para nos libertar. Acredito que seja verdade se bem que este frio Bracarense é tórrido e não glacial.
Bastou pôr os pés fora da estação. Bastou inspirar fundo. Bastou fechar os olhos. Estou de volta a um local de onde nunca verdadeiramente saí, mas tive a sorte de me afastar. Assim todos os reencontros são mágicos e toda a ausência quase insuportável. Faz parte da condição humana valorizar o que se perdeu, o que fugiu, o que não se tentou conquistar.
9h30. Depois de um banho debaixo de um chuveiro a expelir água à temperatura do magma, estou pronto. Estou em Nogueira, tenho o centro de Braga numa direcção e a casa do Miguel em Escudeiros, na direcção oposta. Sigo para Escudeiros. São uns 8 ou 9 km que não me incomodam nada. O frio já nem sequer merece o estatuto de incógnita nesta equação.
Andar a pé por estes lados é como embarcar numa viagem ao passado. Andei, corri e palmilhei todas as estradinhas deste concelho, e mais do que muitas vezes. Há mais uma estrada aqui, mais um viaduto acolá, mas o essencial mantém-se imutável. Esta terra continua cheia de Minhotos, abençoados sejam. Pela sua simpatia, pela forma como sorriem e cumprimentam quem não conhecem, nem querem conhecer. Abençoados sejam pelos sorrisos que são tão quentes como o frio que os cerca, abençoados sejam por conseguirem manter as casas sempre abertas para o próximo e o distante. Abençoados sejam pelo seu sotaque maravilhoso que devia ser património da Humanidade.
Vir a Braga no inverno é ter uma aula prática de como o calor humano é sempre mais forte do que o frio atmosférico. Vir a Braga no inverno é inverter a vasoconstrição que nos arroxeia a pele à custa da dilatação do coração que às vezes parece querer rebentar quando se encontra um rosto conhecido, um local onde se foi feliz, uma pedra onde se sentou, riu, chorou ou viveu. Esta cidade está inundada de memórias que vão de menos infinito a mais infinito. Esta cidade onde passei mais do que sei explicar mas muito menos do que ainda quero viver.
Na noite de 29 para 30 de Setembro de 1992 vim de comboio a caminho de Braga para me matricular na Universidade do Minho. Na altura deixei tudo e todos para trás e pensei algo como "vou ali tirar um curso e já volto para casa". Nunca teria adivinhado na altura que me estava a dirigir a tudo o que uma casa deveria ser.

Pisei-te

Foi tornado público o relatório Pisa 2009 elaborado pela agência governamental OCDE. De acordo com o relatoriado, Portugal “registou uma evolução impressionante nos resultados da avaliação de alunos” tendo sido dito que "O que é mais interessante nos resultados de Portugal é que o salto foi conseguido sem sacrificar o equilíbrio dos diferentes níveis de alunos. Não houve declínio no topo para se conseguir a melhoria na base". Como podem calcular, o delírio não fica por aqui, tendo mesmo os jograis que escreveram esta ode, dito que a melhoria de resultados "pode ser explicada em primeiro lugar pelas políticas seguidas nos últimos anos”.

Já estou a imaginar o que se seguirá. Falanges de virgens vestais à desgarrada com cardumes de Ulíssicas sereias a protestarem contra as conclusões de tão ignóbeis analfabetos. Regimentos de professores martirizados na cruz da avaliação incipiente a que foram condenados, a explicar os seus argumentos tautológicos, redundantes e repetitivos, segundo os quais estes resultados não passam de uma batota administrativa imposta por terroristas ministeriais que atacaram ao volante de aviões de papel as torres do rigor e da exigência no ensino.

Como era bom que Proust estivesse errado e que o tempo que passou não estivesse de facto passado. Como era bom o antigamente em que se podia defender a universalização da entrada no sistema de ensino mas o elitismo na saída do mesmo. Como era bom que a escola se abrisse à sociedade mas barrasse a entrada da sociedade nela própria como um falo violador da sua pureza original.

Há, quanto a mim, duas formas de encarar o ensino, o ensino democrático e o ensino elitista. Podemos organizar o sistema de ensino para formar os melhores dos melhores perdendo muitos pelo caminho como se fossem “baixas de guerra” ou “danos colaterais”. É uma opção que considero tão errada como a rigidez do losango de meio campo do Paulo Bento. A aposta nesta estratégia de elite, defendida por muita gente de esquerda ideologicamente asséptica, recusa-se a compreender que é impossível exigir o mesmo a todos os alunos, recusa-se a aceitar que é errado formatar todas as crianças pela mesma bitola e, se ainda aplicada, faria das escolas tubos de ensaio cheios de caos colocados num vórtex. Há outra forma de olhar para as coisas, há uma forma de tentar levar o sistema de ensino às reais necessidades dos alunos. É uma maneira muito mais difícil de agir, é uma estratégia tão directa como o traçado do IP5 mas certamente mais justa para as crianças, sim porque por escandalosamente real que seja, é para elas que tem que estar vocacionado qualquer sistema de ensino. Nesta forma democrática de ver a escola tem que ser assumido que nem todos os alunos querem ser médicos ou engenheiros, nesta forma de ver as coisas tem que ser aceite que muitas das crianças nem sequer na escola querem estar, mas, a escola tem que dar resposta ao maior número possível delas. Esta forma de ver o ensino obriga-nos a apostar no ensino profissional para tentar recuperar de um crime com mais de 30 anos que foi o encerramento das antigas escolas comerciais e industriais.
Diversificando o leque de ofertas aos nossos alunos, aumentando o número de cursos profissionais, destruindo o mito igualitário que imperou demasiado tempo, poderemos ter uma escola realmente universal, inclusiva e democrática, isto é, na minha opinião, tão certo como o quadrado da hipertenusa ser igual à soma dos quadrados dos badamecos.

Devêmo-lo a todos. Aos pais que se interessam e participam, aos professores que dão o litro, a tonelada e o quilómetro, aos alunos que se esforçam. Devêmo-lo ainda a todos os Portugueses, já que foi o dinheiro dos seus impostos que em 15 anos pagou a explosão que houve no número de bibliotecas escolares, que apetrechou laboratórios, construiu pavilhões desportivos e que foi investido na maior revolução tecnológica vista em qualquer sistema de ensino europeu.

Abaixo assinado

Venho por este meio manifestar a minha total e absoluta solidariedade para com os Juízes do nosso país, no que respeita à decisão de deixar de atribuir o subsídio de residência de 600 euros, tendo o mesmo passado a ser incluído no seu vencimento.

No meu ponto de vista esta medida é brutalmente lesiva da dignidade pessoal, profissional, cooperativa e gramatical dos mesmos, já para não dizer que é selvaticamente discriminatória. Neste sentido, venho por este meio exigir ao Governo que trate todos os Portugueses da mesma maneira para que uns não se sintam perseguidos ao contrário dos outros.

Caso existam Portugueses que se oponham ao facto de passar a receber, incluído no seu salário, os 600 euros do antigo subsídio de residência que nunca tiveram, manifesto a minha disponibilidade para ser sacrificado sozinho no altar da justiça fiscal.

Respeitosamente

Sérgio Nicolae

Diário - 11 de Novembro

Em 1215 um concílio decretou a doutrina da transsubstanciação, o que traduzindo quer dizer o processo através do qual o pão e o vinho são convertidos na carne e no sangue de cristo. Muitos anos mais tarde Embden e Meyerhof descobriram finalmente todos os passos do processo através do qual o pão e o vinho são produzidos, para os leigos, a Fermentação. Mais uma vez a religião precedeu a ciência e a ciência corrigiu a religião.

No ano de 1889 Washington, depois de General, Presidente e Capital, foi admitido como Estado integrante dos Estados Unidos da América numa acumulação de funções sem precedentes na história do país.

1918 viu o dia 11 de Novembro marcar dois acontecimentos importantes. Foi o dia de independência da Polónia e foi o dia em que se assinou o armistício que conduziu ao final da 1ª guerra mundial. Como todos sabem, o final da 1ª guerra mundial deu origem não a um tratado de paz mas a uma declaração de guerra contra os já vencidos. 27 anos depois existiam cerca de 55 milhões de pessoas que gostariam que isso não tivesse acontecido.

Em 1926 foi aberta a estrada que mais quero percorrer na vida. É a mítica estrada 66 que liga as duas costas americanas.

Para finalizar, em 1975 foi neste dia que o país que me viu nascer celebrou a sua independência. Nessa altura já estava muito longe de Angola, num apartamento perto de Oeiras e não há registos familiares que confirmem que eu tenha feito algo de diferente do normal. O mais provável é mesmo que tenha festejado a data mamando, borrando-me todo e dormindo.

Enxovalho

É assim amiguinhos(as). Há dias lixados e ontem foi um deles (futebolisticamente falando porque de resto foi um dia maravilhoso).
O meu Benfica foi enxovalhado sem apelo nem agravo, e ainda por cima às mãos do seu principal rival. Não tenho por hábito inventar desculpas, não tenho como forma de vida o atirar para cima de terceiros responsabilidades que não lhes cabem. Não serei visto a fazer o papel que muitos fizeram o ano passado, enterrando em túneis ocultos a explicação para uma época soberba da minha equipa.
O Benfica este ano está inseguro, triste, vazio de ideias e sem a alma que teve o ano passado. Ao invés, o Porto espalha classe e crença pelos campos, inunda a sua vontade de jogar e ganhar, apaixona os seus adeptos, e todos os adeptos de bom futebol. Sinto-me no sétimo círculo do inferno porque vejo os meus rivais a fazerem o que a minha equipa fez o ano passado. Venceram, venceram bem e mereceram o resultado dilatado que construíram.
Dói, mas a realidade não se satisfaz nem se altera com desculpas. Parabéns ao Porto, parabéns a todos os portistas, excepção óbvia à escumalha nojenta que conseguiu iludir três milhões de anos de evolução e teima em cada batimento cardíaco em nos recordar que não consegue existir de forma saudável fora de uma jaula.
Hoje é outro dia, e apesar da desilusão, sou Benfiquista e assumo-o com orgulho. Quem não é capaz de manter a cabeça erguida na hora da derrota, não merece tê-la levantada na hora da vitória.

Diário - 22 de Outubro

A história de Portugal presenteou-nos com muitos erros, alguns dos quais trágicos. Um desses erros trágicos foi corrigido em 22 de Outubro de 1383. A saber, o erro trágico foi o nascimento de um puto chorão e merdoso que viria a ser um rei chorão e merdoso chamado D Fernando. D Fernando ficou para a história como “o Belo” o que indica, ou um profundo sarcasmo, ou que os conceitos de beleza na altura assentavam em algo como “tem os membros proporcionados (as partes fodengas não contam), não é disforme, sabe andar e a cara não assusta tanto como o hálito”. De qualquer maneira este artolas chegou ao trono e espatifou completamente as finanças que estavam num excelente estado depois do pai, do avô e do bisavô, que, quando não andaram à bordoada uns com os outros, recuperaram este país de centenas de anos de guerra constante. Este palerma decidiu invadir Castela, fê-lo por três vezes e das três voltou com a extensão posterior da coluna vertebral de muitos vertebrados, situada em posição dorsal em relação ao ânus, entre os membros locomotores posteriores. No final do cortejo abjecto de parvoíces que foi o seu reinado, ainda deixou uma filha miúda casada com um rei Castelhano graúdo, (a pedofilia era permitida em casas reais) uma viúva devassa a devassar um conde que se escondia em guardafatos e um reino num estado mais caótico que os trabalhos de casa de contabilidade pública do Teixeira dos Santos. A sua morte, há quem diga que foi de peste mas eu aposto que foi de sarna, deu origem a uma das maiores crises da nossa história, que culminou numa das nossas maiores vitórias de sempre.

Muitos anos mais tarde, já no século XX, foi neste dia em 1934 que o FBI matou um famoso ladrão de bancos, o Pretty Boy Floyd. O seu irmão gay de nome Pink Floyd sobreviveu e inspirou a criação de um dos melhores grupos de música de todos os tempos.

Em 1975 foi a vez da expedição soviética não tripulada, Venera 9, ter aterrado em Vénus. A expedição não foi tripulada por medo que os tripulantes desertassem, e, também, …. adivinharam, por medo das doenças venéreas.

Para terminar, foi neste dia que Maurice Pappon, um ex oficial da França de Vichy (governo provisório no sul de França que tinha como passatempo favorito beijar o rabo aos nazis) foi preso por crimes contra a humanidade.

E amanhã há mais !

21 de Outubro

Hoje acordei virado para a História. Tenho dias assim, o quê que querem que eu faça ?

21 de Outubro foi um dia importante na História pelos mais variados motivos. Em 1096 aquela que ficou conhecida pela “cruzada popular”, que não foi mais que um exército de pedintes religiosamente fanatizados liderada pelo Pedro, o Eremita (nada a ver com a carta do Tarot) apanhou com um exército turco pela frente e atravessou o rio mitológico que separa este mundo do outro. Mais tarde, em 1512 Martin Lutero entrou numa faculdade de Teologia qualquer. Um dia escreveria as “95 Teses contra as indulgências”, livro que deu origem à Reforma. A sua tentativa de reformar o regabofe em que se tinha tornado a igreja católica deu origem a uma orgia de violência e de sangue, onde a guerra dos 30 anos foi o mais aterrador exemplo. O que começou como uma preocupação ambiental (reformar o Vaticano) acabou como inovação culinária (o arroz de cabidela). Oito anos mais tarde um Português emigrado que daria o nome a um computador dobrou o extremo sul do continente americano, tendo dado a esse estreito o nome, adivinhem de quê … exacto, de um computador. Para os leigos, estou a falar do Magalhães.

Muito tempo depois, neste mesmo dia em 1805, uma frota Inglesa liderada pelo Almirante Nélson ensinou técnicas pioneiras de mergulho subaquático a uma frota combinada de Espanhóis e Franceses. As técnicas foram tão pioneiras que no início do sec XX ainda houve quem as aplicasse, como no caso do Titanic. Entretanto, os Ingleses ficaram tão contentes com o resultado que decidiram enfiar o tal Almirante em cima de uma coluna numa das principais praças de Londres. E há quem diga que os homens do mar não têm uma vida dura.

Em 21 de Outubro de 1854 uma Senhora chamada Florence Nightingale decidiu levar 38 enfermeiras para a guerra da Crimeia. Criou os primeiros hospitais de campanha dos tempos modernos e conquistou o seu lugar como uma das grandes mulheres da História, isto na minha opinião. O que foi mais fantástico em toda esta questão, e apesar de incompreensível para muitas políticas da nossa praça, é que o fez sem que tivesse sido necessária qualquer Lei das cotas ou da paridade, e sem apoio de nenhum Ministério para a Igualdade de Género. Fantástico Mike !!!

Em 1879 Edison conseguiu que um filamento de carbono estivesse aceso durante 13 horas e meia, e, já que falamos de luz, em 1921 o Presidente Americano Warren Harding fez pela primeira vez um discurso a criticar os linchamentos de negros no sul dos Estados Unidos. É verdade, 56 anos depois de uma guerra civil que teve como resultado a libertação dos escravos e a sua assumpção na constituição como cidadãos de pleno direito, alguém se revoltou em público e disse algo como “epá, não linchem os pretos”. Custou mas foi. Em 1944 ocorreu o primeiro ataque de kamikazes. Segundo se sabe foram sindicalistas em protesto pelo regime de avaliação que estava a ser introduzido na força aérea nipónica. Infelizmente este facto nunca foi provado porque os intervenientes morreram urrando histericamente algo como “Seravali Adu Saikaro” que se traduz como “antes morto que avaliado”.

E pronto, foi assim o dia 21 de Outubro. Termino porque até mesmo eu tenho um certo limite para a quantidade de disparates que escrevo de uma só vez.

Ressaca III

São 9 horas. Está com numa postura vertical de fazer inveja a qualquer linha recta. Pasta preta entre ambos os pés, óculos escuros, jornal de negócios aberto. Veste um fato listado, preta a cor principal, azuis as linhas, gravata algures entre o azul e o turquesa. Postura clássica de executivo, ainda não deve ter 30 anos mas esforça-se para parecer ter 40. Pode ser vendedor ou gestor, economista ou advogado. É daqueles para quem a imagem vale muito, vale pelo menos a primeira impressão e esforça-se para que essa primeira impressão seja intimidatória. Se não fosse o facto de, de dois em dois minutos, olhar para todos os lados, fiscalizar se o brilho impecável da graxa dos seus sapatos ainda se mantém, passar a mão pelo cabelo para o ajeitar, era impossível perceber a sua insegurança quase perfeitamente mascarada.

9 horas e 32 minutos. Sapatilhas sem atacadores e tão gastas que só a imaginação nos leva a crer que alguma vez tiveram alguma característica cromática. Calças de ganga ou a imitar o gasto, ou então gastas para além de qualquer prazo de validade, situadas bem abaixo do rabo, o que lhe permite mostrar os boxers puxados para cima até ao umbigo. Casaco camuflado, T-shirt do che guevara, cabelo desgrenhado com aspecto mais oleoso que um big Mac em hora de ponta. Cara redonda mas não rechonchuda, impossível de reconhecer traços originais por detrás das diferentes gerações de rebeldia acniana que o transformaram numa aula prática de cubismo. Desloca-se como quem não quer saber de onde vem nem para onde vai. Não pertence ao mundo e o mundo não lhe pertence, aliás, não há mundo, pelo menos um mundo em que se sinta. Escarra para o chão com a mesma Homérica indiferença com que pontapeia duas latas de cerveja que encontra no caminho espalhando a sua atitude de QSF (quer dizer “que sa foda” mas é óbvio que não escreverei coisas dessas no meu blog).

12 horas e 45 minutos. Desce na escada rolante com uma postura esfíngica, olhar em frente para o vazio do destino, corpo hirto e imperturbável. Sabe que não vale a pena olhar à volta, sabe que é ela que tem que ser contemplada, ela, obra prima da criação, costela elevada à divindade. É mais alta do que a média, tem uns cabelos aloirados ondulantes que se espalham pelos ombros como guarda de honra de um pescoço mais comprido que o normal. Top preto suficientemente pequeno para mostrar quanto baste para despertar o desejo de sonhar com o resto, calças quatro números abaixo do normal de forma a não criar qualquer ruído que nos impeça de perceber que as curvas do seu corpo foram esculpidas por poetas. Não é humana, pelo menos não como defino a humanidade. Carrega em si em potência o drama dos que gostam de se ver acima dos outros. Mais cedo ou mais tarde os outros fazem-lhes a vontade e chutam-nos para fora deste círculo em que só os imperfeitos convivem, porque a perfeição é como a fruta em calda, na quantidade suficiente sabe bem, no exagero enoja.

12 horas e 54 minutos. Baixa, magra, cabelo preto apanhado numa trança até metade das costas. Não anda, saltita suavemente como quem acha a força da gravidade uma perda de tempo. Tem uma mala à tiracolo e o telemóvel numa mão, sorri. Nada do que se passa à sua volta importuna a sua caminhada mas a sua caminhada deixa um rasto de cor e de som que até nas pedras da calçada se entranha. Se existisse uma escala de evolução para aplicar às mulheres, ela estava no topo. Pertence à classe de mulheres que são amadas e sabem-no, não há ser mais perfeito na criação ou evolução. Vê-se pela forma como sorri, identifica-se pelo tom em que fala, adivinha-se na suave dança dos seus movimentos. Nisso elas são diferentes de nós, e ainda bem. Uma mulher amada é uma ode triunfal, uma sinfonia de felicidade e uma luz que ilumina, aquece e não se esgota. Infelizmente tenho-me cruzado com poucas nos últimos tempos, mas esta é claramente uma delas.

Por esta altura devem estar a perguntar que raio de relatos são estes, é muito simples e passo a explicar. O que estas quatro pessoas têm em comum é que se cruzaram comigo hoje, estavam todas elas a fumar um cigarro e só me apeteceu, independentemente do sexo, idade ou aspecto, beijá-las na boca e sugar-lhes todo o ar dos pulmões.

Esta é a medida do meu desespero !

Ressaca II

48 horas. Agora sim isto começa a doer. Ontem à noite fechei-me em casa assim que consegui. Pela primeira vez soube que se passasse por algum local com cigarros comprava e fumava um maço inteiro nuns 15/20 minutos. Fechadinho e com um livro nas mãos a coisa compôs-se um pouco, apesar de precisar de 4 ou 5 repetições para entender o sentido das frases. O maior problema começa a ser exactamente esse, a realidade deixou de ser algo sólido e palpável e passou a ser uma imagem difusa que me passa à frente dos olhos como uma névoa, ou uma baforada de fumo de tabaco.

Esta noite adormeci lá pelas 5h00, se já tenho por hábito adormecer tarde, a falta da droga parece estar a piorar a situação. Acordei quando o despertador me mandou acordar e, surpresa agradável, não sinto a garganta tão miserável como de costume e lavar os dentes deixou de ser uma emergência imediata e passou a poder esperar por umas boas espreguiçadelas, isto porque sinto o hálito bem menos tóxico.

Felizmente ainda só tive acessos de mau feitio e não houve nenhuma verdadeira explosão, apesar de saber que elas vão acontecer, já me foram enviadas pelo correio.

Quando estudava Ecologia lembro-me vagamente de falar num conceito do género de “espécies dominantes” que eram espécies cuja acção influenciava todo o Ecossistema. Pois bem, nós também temos hábitos dominantes, ou vícios dominantes, como quiserem. O tabaco comigo é/era um deles. Olhando e revendo o meu dia-a-dia noto claramente que o acto de puxar de um cigarro era não só estrutural como estruturante. Em cada um dos momentos da minha rotina diária sinto que falta alguma coisa, que algo está incompleto, que o encadeamento deixou de fazer sentido. Estou a tentar adaptar-me mas sinto-me como um errante com uma bússola avariada que só aponta o caminho para uma máquina de maços de tabaco.

Apesar de tudo, tenham calma, não desesperem. Ainda não desisti, e sei que vai piorar, e MUITO !

Ressaca I

Se defini ontem o “vício” como a incapacidade de travar a presença de algo que nos dá prazer, então a “ressaca” só pode considerada como a reacção do corpo à falta de algo que lhe dá prazer. Bem, vou parar de brincar aos dicionários e passar directamente ao que interessa, não fumo há 27 horas.

Não me venham com as conversas do costume do género de “não penses no assunto”, “não contes as horas”, “tens que continuar”, já conheço essas deixas todas. Sim até mesmo eu já li, em dias de paragem cerebral, esses livrinhos de auto-ajuda que nos convencem que somos os melhores do mundo e que somos capazes de tudo. Quem os escreve só se esquece normalmente de explicar é que se precisamos de ser convencidos de que somos capazes de algo, então é porque na realidade não somos.

Largando a metafísica, a realidade é que esta porcaria custa como tudo. Ainda só passou um dia, ou seja, na travessia do deserto eu ainda estou na parte é que percebo que aquilo tem areia e é um bocadinho quente. O dia de ontem, depois do cigarro das 9h30, foi estranho. Tive a sorte de ter tido muito trabalho o que me ocupou bastante a cabeça mas senti logo falta da minha droga preferida. Percebi-o quando me levantei para ir onde sempre vou fumar e ao lá chegar é que aceitei a nova realidade. Andei a deambular pelos corredores da casa em busca de um motivo lógico para a decisão que tinha tomado, mas, com ou sem lógica, o meu corpinho vai passar a ser uma “smoke free zone”. Saí do serviço e fui andando a pé até à estação da CP e ao contrário de dias anteriores dispensei o banco onde me sento a fumar o cigarrito antes do comboio. Depois do jantar começou o verdadeiro inferno. O café e o tabaco amam-se como um hamburger e batatas fritas e por mais que me convença da justiça desta minha nova odisseia, acho que separar um amor destes é um pecado mortal. Já vi a realidade mas ainda resisto a aceitá-la, se quiser mesmo cortar com o tabaco, e quero, vou ter que enfiar o café no mesmo saco e despachá-lo para a gaveta das memórias, nem que seja temporariamente.

O dia hoje correu bem, pelo menos até chegar ao serviço e beber o café da manhã. Saí do bar a jogar a mão ao bolso em busca do maço, como o fiz inúmeras vezes mas a realidade mudou. Confesso que estou a aguentar bem, por mais que me queixe, mas também tenho a perfeita certeza que o pior está para vir. O que acho estranha é esta sensação de pairar sobre a realidade. Quando comecei a fumar há 11 anos atrás adorava o primeiro cigarro da manhã. Fumava-o e apanhava aquela tontura simpática como se andasse numa dimensão diferente. Agora a falta do tabaco coloca-me permanentemente nesse estado, o que é complicado para quem tem que se recordar de muitas coisas no trabalho.

Estou a entrar num estado de anestesia que me preocupa porque as minhas responsabilidades não se compadecem com erros que possam ser justificados com “nicotina shortage”. De qualquer forma, “a gente vai continuar” como canta o Jorge Palma. Tal como sempre fiz ao longo da vida, só prometo luta, nunca vitória. Mas tal como a vida também me ensinou, tenho hábito de ser melhor quando estou em baixo e, acreditem, não me estou a sentir nada capaz de aguentar esta luta contra o meu vício preferido. E é exactamente por não me sentir capaz que sei que desta vez tenho hipóteses reais de triunfar.

É complicado perceber ? Sim, eu sei que é, mas que hei-de eu fazer. Simples simples era comprar um maço e acabar com isto, mas desta vez abjuro a simplicidade.

Vícios

Há uma estranha relação entre o prazer e o vício. Atribuímos naturalmente uma conotação negativa à palavra “vício” quando que no fundo, o seu conceito resulta apenas da nossa incapacidade de travar algo que nos dá prazer.

Eu, pela minha parte, não tenho problemas em assumir que sou um típico viciado. Quando gosto de algo não tenho grande facilidade em afastar-me de livre vontade do que me faz sentir bem. Sou daquelas pessoas que não compreendem por que razão é educado e tem etiqueta deixar um pouco de bebida no fundo de um copo. Se gosto do que estou a beber bebo tudo, enquanto me apetecer. E se quiser sirvo-me mais 2, 3 ou 10 vezes e ai de quem me tentar impedir. Nunca vou entender por que raio a cozinha Francesa tem tão bom nome quando eles se limitam a enfeitar pratos com amostras de comida tão pequenas que fariam um hamster pensar que tinha emigrado para o Biafra. Não me venham com a eterna história de que só devemos comer enquanto temos fome, quero que se danem com essas teorias. Se a comida me está a saber bem, se estou a ter prazer em comer, como até encher o estômago e o esófago ou pensam que consegui este belo corpinho sem esforço ?

Mas não pensem que isto se limita à comida e à bebida, não ! Também sou viciado, por exemplo, em pessoas. Sou viciado nas suas particularidades, no que faz delas diferentes de todas as outras. Sou viciado nos olhares, nos sorrisos, sim, principalmente nos sorrisos, nas conversas, em tudo o que me oferecem sem saber e que me torna dependente delas. Consigo, com maior ou menor dificuldade, dispensar quase todas as coisas que me rodeiam, mas quando se fala de pessoas, perder alguém que é companhia assídua e agradável (aliás, se não fosse agradável não seria assídua) é das piores privações que por que passei.

Em termos de vícios, há também o tabaco. Tenho uma média impressionante de fumar um maço por dia, sendo raras as vezes que a ultrapasso. É óbvio que se pensar bem consigo reduzir a 5 ou 6 cigarros mas esses são absolutamente essenciais à manutenção da minha sanidade. Só quem fuma, ou fumou, é que consegue compreender a sensação da primeira passa de um cigarro a seguir ao café da manhã e por mais que me provem cientificamente, medicamente, espiritualmente ou gramaticalmente que vou morrer mais cedo por fumar, a realidade é que não quero saber. Tenho muitas dúvidas que viva mais se cortar com todos os meus vícios, acredito muito mais que o tempo simplesmente vai é custar mais a passar. Independentemente de toda esta conversa, a verdade é que depois de algumas ameaças que já se arrastavam há duas semanas acabei a receber inspiração de onde não esperava. Descobri uma colega de serviço envolvida numa guerra semelhante e antecipei o início da minha. Declarei hoje (15/9/10) oficialmente guerra ao tabaco. Não vai ser nada fácil, e, exactamente por isso vai ser giro. Vou dando notícias de como as coisas estão a correr. Se conseguir deixar de fumar, garanto que daqui a uns tempos compro um belo de um charuto para comemorar.

Desejem-me boa sorte.

Sondagens

Se não me falha a memória, em finais de Abril houve uma sondagem a dar o PSD de Passos Coelho na liderança. Lembro-me bem porque passou em todas as TVs e foi capa de jornal até à exaustão. Acabei de saber que há poucos dias saiu outra sondagem com o PSD e o "exterminador implacável" do estado social em queda. Como vivemos num país que, segundo algumas alimárias, a comunicação social é controlada pelo Governo, pergunto: Por que raio essa sondagem não mereceu tanta atenção como a primeira ?

O anti-herói

Terminou o campeonato do mundo de futebol. Como é típico, agora vem a altura de fazer todos os balanços sobre o que aconteceu. Quem surpreendeu pela positiva, quem se afundou abaixo das expectativas. Está na hora de escolher os heróis e os vilões do certame desportivo. Eu, pela minha parte, desta vez não escolherei um “herói” do mundial. Neste ano, já escolhi o meu “anti-herói”, Andrés Iniesta.

Muitos poderão referir a minha esperteza saloia por escolher precisamente o homem que marcou o golo da vitória Espanhola na final. Azarito. Fiquem lá com os vossos rebuçados que a minha dieta desaconselha-os fortemente. Escolho Iniesta por muito mais do que o golo que marcou.

Iniesta foge à velocidade da luz do arquétipo do jogador de futebol moderno. Ele é tímido e reservado, calado e nada espampanante. Ele cumpre o seu papel, que é jogar futebol, e fá-lo melhor do que a maioria, e, ainda por cima, tem a coragem rara de não se gabar disso em público. Andrés é humilde, tão humilde como só os bravos conseguem ser. Não passeia tatuagens pelos relvados, não usa os incontornáveis brincos, não tem vergonha da sua careca e não consta que pense fazer implantes capilares para melhorar a sua imagem, como muitas dessas mariposas metrossexuais que por aí andam fariam. Não se conhece uma campanha publicitária daquelas a que os futebolistas tanto se dedicam, seja a uma marca de combustíveis para foguetões ou a um molho qualquer para temperar uma salada de beringelas.

Iniesta faz o que gosta de fazer. Joga, cria jogo, marca e é feliz assim, porque tudo o resto são cantigas, e ele não se reconhece nas letras ou músicas. É impensável vê-lo chegar a um estádio de helicóptero, é impossível imaginá-lo a comprar um filho para aparecer nas capas dos jornais.

A nossa sociedade continua a privilegiar comportamentos paleolíticos. Não interessa muito quem realmente somos, interessa muito mais a imagem de nós que passamos. Se um homem se mostra confiante e decidido, mesmo que não o seja, tem abertas todas as portas e é por todos admirado. Se um homem se mostra humilde e recatado, por muito corajoso ou confiante que seja, vende a imagem de alguém fraco e medroso. Essas imagens valem muito mais do que a realidade, e nem sequer se dão ao trabalho de descortinar quando a imagem é uma máscara para traumas e fraquezas, ou quando a timidez é apenas um véu que protege toda a força interior que está escondida. Triste humanidade esta que depois de partir o átomo e descodificar o gene ainda se rege por regras sociais dos tempos em que resolvíamos os nossos problemas à mocada dentro de uma gruta.

Iniesta é o anti-herói porque escarna olimpicamente sobre os que se prendem a estes conceitos da ditadura da imagem. Fá-lo, não só por ser bom, melhor do que a maioria dos outros, mas por saber que será reconhecido mesmo sem se tornar num emplastro para a comunicação social e as revistas cor-de-rosa. Por tudo isso, Andrés Iniesta merece o seu momento de honra no cimo do pedestal. É claro que não o quer, nós os tímidos, nunca o queremos. Mas que merece, merece !

Estranhos

A semana passada recebi pela primeira vez estranhos em casa. Tive algumas opiniões favoráveis ao meu ingresso no couchsurfing, outras desfavoráveis que não se cansaram de me repetir os riscos. Como de costume, decidi e segui em frente, o meu apartamento vai servir este verão de santuário para pessoal de quer passar férias de forma barata.

Terça feira passada chegaram os pioneiros. Ele é o Tim. Americano de 25 anos com 2,05 metros. Estuda engenharia bio-médica na Holanda. É de S Diego, na Califórnia, uma das cidades mais bonitas dos Estados Unidos, país de onde saiu aos 19 anos para ir trabalhar para a Austrália. Temos algumas coisas em comum, pelo menos no que às férias diz respeito. Gosta de partir à descoberta sem planos nem roteiros, gosta de ser atropelado pelo inesperado, de errar sem destino e de reagir a estímulos, mais do que os prever. Contou-me que um dia se lembrou de ir de onde estava para Sidney. Olhou para o mapa mas não para a escala, fez-se à estrada e ficou sem gasóleo a uns 350 km do destino. Passadas 12 horas parado no carro no meio do deserto, foi socorrido por um carro que passou com 4 jovens, incluindo a futura namorada, que seria por evolução favorável do destino, futura esposa. Pediu-a em casamento 7 meses depois quando, segundo as suas palavras, percebeu que ouvir a sua voz todas as manhãs seria suficiente para ser feliz, ainda que lhe faltasse tudo o resto. Adora futebol e inveja a capacidade que nós europeus temos de encontrar no desporto um factor de unidade nacional, coisa que não acontece nos Estados Unidos onde as competições são entre clubes e universidades e nada mais. Adora política mas está descrente sobre a capacidade dos Americanos corrigirem o que há de errado no país. É louco pela Europa e quer conhecê-la toda devido às muitas convulsões e complicações que são estranhas à simplicidade do sistema Americano.

Ela, bem, ela é a Asli. Turca da zona de Ancara descendente de Tártaros que viveram alguns séculos na Crimeia. É baixinha, de cabelos que ainda não decidiram se são castanhos claros ou louros, e com uns olhos verdes, verdes inundados em clorofila, daqueles olhos onde um homem se perde mesmo ainda antes de pensar em perder-se. Ela estuda também na Holanda uma coisa chamada Design Industrial e no seu tempo livre é voluntária numa associação de apoio a doentes com Alzheimer. Adora música, especialmente música étnica e Jazz, pinta de vez em quando e é dançarina de dança do ventre. Não liga muito à religião mas é muçulmana. Segundo ela seria uma traição não respeitar a religião graças à qual tantos dos seus antepassados foram perseguidos por governos czaristas e comunas. O sonho dela é conhecer o mundo. Visitar sítios diferentes, contactar com culturas distintas, conversar com estranhos. É uma profunda idealista que acredita que só criando uma rede que rompa com as fronteiras a que ainda nos agarramos é que podemos ter consciência que cada ser humano é uma obra prima da criação, natural ou divina, e que só quando nos olharmos como tal deixaremos de nos matar uns aos outros por motivos estúpidos. Uma noite, a olhar para as borras do pior café que bebi este milénio, disse-me ser uma tradição Tártara ler a sina nas ditas borras do café. Foi a deixa perfeita para uma das minhas típicas piadas que saiu sob a forma de “I saw it in Harry Potter”, ao que ela respondeu com um brutal “Hey jackass, do I look like Trelawney to you ?”. Finda a troca de galhardetes, lá virou a chávena ao contrário e a leitura que fez deixou-me literalmente de queixos no chão, sim, ainda mais do que a cor dos seus olhos.

Estiveram cá três dias. Foram às ilhas, conheceram a baixa de Olhão, apaixonaram-se pelos gelados da Gelvi que disseram ser os melhores que já comeram. Ficaram extasiados por podermos comer uma posta gigante de espadarte por 12 euros e, na última noite fizeram uma birra monumental porque queriam comer carne, problema prontamente resolvido com uma ida a um rodízio. Depois de uma refeição com todos os requintes de alarvidade, em que a Asli devorou com uma sofreguidão que merecia prémio Nobel todos os pedaços de ananás grelhado que conseguiu (nunca tinha provado tal coisa), fomos ao Cantaloupe onde, ao som de Jazz, tivemos mais uma amena cavaqueira. Numa dada altura perguntei-lhes se tinham algum desejo especial para a última noite. O Tim, vergado a 6 ou 7 cervejas e a 1/3 de uma aguardente de medronho soltou um simples “I just want to be near the sea”, enquanto que a Asli, amaciada por 2 caipirinhas e outro 1/3 de aguardente de medronho saiu-se com um poético “I want something different, something magic”. Eu pelo meu lado, desperto por duas taças de vinho tinto e pelo 1/3 restante da aguardente, lembrei-me de citar o Harry no 6º filme da sua saga e proferi um confiante e decidido “then by all means, come along”.

Alugámos um barco onde entrámos, o Tim com um sorriso de delinquência infantil, a Asli com uma apreensão que oscilava entre o receio e a excitação. Um minuto depois vogávamos pela Ria Formosa à velocidade da aventura e só parámos na ilha da Armona. Eram 0h45. O motorista colou-se a nós, como era por demais previsível. Fomos a um bar que fica junto à praia e enquanto o Tim com um estoicismo admirável aturou o nosso motorista a explicar como perdeu uma carreira futebolística excelente para vir para Portugal ter com a mãe, eu e a Asli juntámo-nos a um grupo que, ao som de viola, ia cantando tudo o que havia para cantar. Depois das cantorias ainda houve tempo para um passeio pela praia, para molhar os pés, e, para numa ofensiva tão bem consertada que faria inveja a qualquer regimento de operações especiais, encharcar o motorista, o que foi bastante arriscado dado que ele tinha as chaves do barco. Antes de tudo terminar, a Asli ainda me chamou à parte e durante meia hora soltou toda a sua perspicácia e terminou a conversa da leitura da sina da noite anterior, conversa essa que corre o risco de se tornar numa das mais emblemáticas e importantes dos últimos tempos.

Voltámos para Olhão já as 4h00 tinham passado. O Tim mais adormecido que acordado, a Asli mais confiante no barco, mas ainda assim a cravar-me as unhas no ombro cada vez que havia uma guinada ou rasgávamos alguma onda.

No dia seguinte foram embora. Deixaram atrás um rasto de risos e gargalhadas, conversas e bons momentos. Só me pediram que lhes arranjasse dormida por três dias, em troca ofereceram-me muito mais do que isso. O “meu” Americano de 2,05m lá foi com a Europa dentro da cabeça. A “minha” Turco-Tártara, essa continuará com o Mundo entre os seus olhos verdes hipnotizantes.

Como balanço, fica a certeza que fiz dois amigos, e, como canta o Sérgio Godinho, “coisa mais preciosa no mundo não há”.

Pickett´s charge

Os dias 1, 2 e 3 de Julho marcaram mais um aniversário da batalha de Gettysburg. Não vou maçar-vos obviamente com o relato de todos os acontecimentos e escaramuças que fizeram dessa batalha o “turning point” da guerra civil americana, nem sequer vou entrar pelos campos da análise histórica para explicar a razão dessa guerra ter sido, na minha opinião, um dos momentos que mudaram o mundo e abriram caminhos que até então existiam apenas na penumbra. Vou apenas concentrar-me no último dia da batalha. Vou apenas ocupar-me de uma carga de infantaria que marcou a fogo a memória e elevou o nome dos derrotados acima da glória dos vencedores.
No dia 1 de Julho o exército confederado (sulistas) caminhava descontraidamente e completamente desmobilizado pelos campos da Pennsylvania (estado onde se situa Gettysburg) seguros de que não tinham oposição. A cavalaria do consagrado Genaral JEB Stuart tinha cometido um erro infantil e, em vez de estar de olho em cima do exército unionista (nortistas) andava divertida a saquear pequenas vilas na outra ponta do estado. A consequência foi que na manhã de 1/7/1863 os destacamentos avançados confederados viram-se apanhados pela cavalaria unionista completamente de surpresa. Robert E Lee, o General sulista, evitou o mais que pode entrar num confronto generalizado, quanto mais não seja porque não sabia que forças estava a enfrentar. A enorme resistência dada pela cavalaria de Buford obrigou-o a rasgar os seus planos originais e a adaptar-se à nova circunstância. A meio da tarde ordenou a todas as forças confederadas presentes que se lançassem no campo de batalha e, a metade do exército unionista já presente foi quase chacinada. Ao cair da noite, Gettysburg estava ocupada e o exército unionista, a receber reforços a cada minuto, estava entrincheirado nas escarpas e montes a sul da cidade.
No dia 2 de Julho, Lee ordenou constantes e sucessivos ataques contra os nortistas mas nenhum deles deu resultado. O exército do norte estava num terreno elevado, com fortes posições defensivas e naqueles tempos as tácticas de guerra associadas ao armamento beneficiavam claramente os defensores.
Eis então que chegamos ao dia 3 de Julho. As linhas unionistas mantêm-se seguras, o exército confederado, depois de atacar ambos os flancos foi repelido. Apesar de muito discutida e muito polémica, Lee decide por um ataque frontal ao centro das linhas do exército da União. O plano de batalha era simples. Três Divisões inteiras, constituídas por nove Brigadas e perfazendo um total de 13.000 homens avançariam em linha recta não parando por nada, nem sequer para responder ao fogo inimigo. Após terminarem esta caminha de dois quilómetros em passo rápido, atacariam as linhas defensivas que se encontravam protegidas por um muro de pedra na extensão de toda a frente. O avanço seria precedido por uma barragem de artilharia com o objectivo de neutralizar os canhões dos nortistas. Teoricamente era bonito, apesar de arriscado. Na prática, foi um desastre. Nenhuma carga de infantaria tinha início sem a típica barragem de artilharia, logo, os unionistas aos primeiros tiros de canhão adivinharam o que aí vinha e retiraram grande parte da sua própria artilharia para fora do alcance dos canhões confederados. Além disso, mobilizaram reforços de outras partes da frente, e podiam fazê-lo em segurança porque a sua frente era muito mais compacta do que a frente sulista. Basicamente as descargas dos confederados acertaram em nada e quando os seus 13.000 soldados saíram dos bosques e iniciaram a caminhada, os unionistas trouxeram de volta os canhões e abriram fogo com tudo o que tinham. A partir dos 1.200 metros de distância os sulistas ficaram ao alcance dos canhões de grande alcance que foram abrindo pontualmente buracos na suas linhas. A cada tiro certeiro os soldados das Brigadas de suporte que vinham atrás ocupavam o lugar dos seus camaradas caídos e com o avanço progressivo as linhas foram encolhendo facilitando a vida aos artilheiros da União que tinham que se preocupar com linhas inimigas cada vez mais curtas e cada vez mais próximas. A cerca de 800 metros do objectivo final, os confederados tiveram que ultrapassar uma cerca em madeira e voltar a formar do outro lado da mesma, o que foi um processo lento e que causou bastantes baixas. As duas Brigadas do General Anderson que deviam estabilizar a frente sul do avanço não conseguiram passar desta cerca, tal foi o elevado número de baixas. Na frente norte, duas Brigadas unionistas abandonaram a linha defensiva e num movimento de flanqueamento sujeitaram toda a metade norte da linha avançada confederada um fogo vindo de duas direcções, o que exponenciou as baixas e fez com que a maioria das Brigadas das Divisões de Pettigrew e Trimble desistissem da carga antes do seu final.
Aos 300 metros de distância tudo piorou. Desta vez os soldados sulistas ficaram sob fogo das munições de curto alcance. Eram chamadas as “grape shots” porque explodiam à saída do canhão e funcionavam como caçadeiras gigantes que abatiam homens à dezena e abriam buracos nas linhas que já não podiam ser preenchidos de novo. Cada vez existiam menos soldados a avançar mas isso não os parou. A 100 metros de distância ficaram ainda ao alcance dos disparos de espingarda. Os soldados do norte tinham linhas com uma profundidade de quatro homens, em que o da frente disparava e os restantes recarregavam as armas.
Nesta altura, já só a Divisão de Pickett se encontrava em combate. As suas três Brigadas eram lideradas por James Kemper, que já tinha caído com uma ferida grave, por Richard Garrett, que ferido numa perna na batalha anterior fez a carga a cavalo ignorando os avisos para não o fazer visto tornar-se num alvo bem identificável. Garrett foi visto até cerca de 200 metros do alvo tendo sido “pulverizado” por um tiro certeiro de “grape shot”. Finalmente havia Lew Armistead que era o oficial de maior patente ainda em combate. Os restos desta três Brigadas sob liderança de Armistead ainda conseguiram furar as linhas defensivas unionistas mas estavam demasiado diminuídas para conseguir suster a frente. O contra ataque do norte foi implacável e perante um General Armistead mortalmente ferido, os soldados sobreviventes renderam-se ou foram mortos.
A carga de Pickett foi um desastre total para os confederados que perderam mais de 50% dos 13.000 homens envolvidos. Para explicitar bem a situação, na divisão de Pickett os três Generais que lideravam as Brigadas foram mortos, bem como os treze Coronéis que lideravam os respectivos regimentos. Numa daquelas ironias fazem a história, o General defensor do lado do norte era Hancock, o melhor amigo de Armistead antes da guerra, que também foi gravemente ferido durante a batalha. Quando os soldados unionistas assistiram um Armistead moribundo, ele pediu-lhes que o seu corpo fosse entregue a Hancock. Ao saber pelos soldados que Hancock também lutava pela vida, as suas últimas palavras foram: “No, not both of us, not all of us”.
Independentemente da minha posição sobre a guerra civil americana, independentemente de achar que o resultado foi o único possível para a Humanidade, mais do que para os Estados Unidos, não consigo deixar de admirar os homens que participaram nesta ridícula carnificina. Não consigo deixar de sentir um leve brilho nos olhos ao imaginar a cena de 13.000 homens avançarem num campo aberto aos gritos de “Virginia, Virginia”.
E avançaram mesmo.
Em direcção à morte e ao sofrimento.
Em direcção à derrota e à eternidade.

Uma noite diferente


Nada como chegar ao local do costume para uma bifana e uma cerveja, e descobrir que, na noite mais movimentada da semana, há falta de pessoal. Como mãos a abanar nunca ajudaram ninguém, vai de tirar cafés, servir cervejas, recolher e limpar mesas, lavar loiça entre a 1h e as 6h da manhã. A minha parte preferida foi no entanto varrer e lavar o chão entre as 6h e as 7h. Talvez esteja a levar a minha (re)conhecida polivalência longe demais.
Bem, pelo menos deu para ver o nascer do sol sobre a Ria Formosa. E espectáculo mais bonito não há.

Em jeito de balanço, há algumas coisas que queria dizer sobre a participação de Portugal no mundial de futebol.
1 – Já não tenho muita paciência para selecções de futebol, confesso. Não sei bem quando começou o divórcio nem quando o mesmo se oficializou, sei que o meu clube me faz vibrar muito mais do que a selecção. Tempos houve em que as selecções eram o conjunto dos nossos melhores jogadores. A globalização futebolística ainda não tinha atingido a dimensão actual e quando olhávamos para a convocatória dos seleccionados, quase todos eles jogavam em Portugal além do facto de serem mesmo todos Portugueses. Hoje isso mudou. Nem venham com a conversa da xenofobia porque quem me conhece sabe que não tenho uma única molécula de ódio a estrangeiros no corpo, mas há coisas em que não faço compromissos. Liedson, Pepe e Deco são Brasileiros, ponto final. Como eles, há uma profusão de outros jogadores que não jogam no país de origem, tendo optado por outros onde encontraram mais oportunidades. O fenómeno generalizou-se e, em vez de selecções nacionais cada vez há mais selecções de naturalizados. Assim, não contem com o meu apoio para estas provas.
2 – Carlos Queiroz é uma vítima clara daquilo que é conhecido como o “princípio de Peter”. Segundo essa sábia fórmula, uma pessoa por vezes desempenha tão bem o seu papel que se convence que pode dar o salto em frente. Quando o faz, espalha-se porque foi incapaz de perceber que o seu nicho era no degrau inferior. Queiroz foi um excelente treinador de camadas jovens, um excelente adjunto e planificador de treinos, como treinador principal é uma daquelas nódoas que nem com benzina saem. Falhou no Sporting quando tinha o melhor plantel de Portugal, falhou no Real de Madrid com mais estrelas que o planetário de Lisboa, falhou uma vez na selecção e agora cumpriu o seu cruel destino mais uma vez. Queiroz é medroso, joga na expectativa do que faz o adversário, não arrisca e é incapaz de incentivar um leão esfomeado a atacar uma gazela com as patas partidas. Portugal nunca teve nos dois últimos anos uma consistência de jogo, nunca mostrou querer ganhar sem ser à custa da inspiração momentânea dos seus jogadores. Neste contexto alguém se surpreende de termos sido eliminados pela campeã europeia nos 1/8 de final ? Eu surpreendo-me por termos lá chegado.
3 – Que dizer do CR ? Bem, que não fiquem dúvidas que o considero um excelente jogador de futebol e um predestinado com a bola nos pés. Pronto, agora posso passar ao resto. O tipo é vaidoso e arrogante, o que pode ser à vontade, mas tem que estar preparado para lhe serem cobrados resultados. Mourinho diz o que quer quando quer e no fim quem não gosta, ouve e cala porque ele ganha, se Ronaldo quiser ter direito ao mesmo, que ganhe. Muitos podem defendê-lo dizendo que Portugal espera muito dele. É verdade que espera, e esse sentimento foi cultivado e fomentado por ele. Quando um jogador de futebol escolhe fazer do seu nome uma marca e decide que tem que aparecer sempre nas notícias seja de que forma for, tem que arcar com as consequências que essa mediatização traz. Ronaldo decidiu que a sua carreira não passava só pelos relvados, decidiu que também tinha que passear pelas revistas cor-de-rosa como uma mariposa metrossexual a arranjar namoradas novas todas as semanas, decidiu que havia de chegar ao estágio da selecção de helicóptero. Mais uma vez estava no seu direito, agora quando promete explodir no mundial, quando afirma ser o maior do mundo e arredores, que cumpra, caso contrário faz figura de urso. Ponha os olhos no Messi que dispensa toda essa publicidade e faz jogos de sonho, quer no clube, quer na selecção. Outra coisa, Ronaldo não sabe reagir a contrariedades. Basta algo correr mal para mostrar o puto azeiteiro que ainda é. Foi uma vez no estádio da Luz a ofender os adeptos, foi ontem de novo a cuspir na direcção da câmara televisiva. Não podemos ter como capitão alguém que reage como ele reagiu. É na derrota que se vê o carácter dos homens e este tipo já mostrou o carácter dele, e mais do que uma vez.
4 – O caso Nani não passou de outra palhaçada inominável. Segundo percebi, ele lesionou-se num ombro em Portugal, foi para a África do Sul, jogou 90 minutos contra Moçambique e depois descobriram que não estava apto nem era recuperável para o mundial. OK, eu também gosto muito de ficção científica mas não a vendo aos outros como verdade. Espero que tenhamos agora direito a uma explicação mais real do que aconteceu.
5 – A asneira toda começou quanto a mim na convocatória. Não percebo alguns nomes e nunca vou compreender a ausência de outros. Paulo Ferreira e Miguel estão ou em baixo de forma ou não jogaram quase nada durante o ano. Onde estava o João Pereira e o Rúben Amorim (que acabou por ir para se lesionar) ? Não faziam falta, o Ricardo Costa podia fazer a posição com a proficiência que vimos ontem. Deco quase não jogou este ano, e mesmo aceitando que é um génio que pode resolver jogos, onde estavam os substitutos para a sua forma intermitente ? João Moutinho e Carlos Martins mereciam o bilhete de ida e Nuno Assis talvez não destoasse muito. Como é que se gastou uma vaga com um Pepe que não se sabia se recuperava e tinha-se a certeza que se recuperasse não teria ritmo de jogo ? Enfim, contradições a mais para quem um dia disse que com ele jogavam sempre os melhores e na melhor forma.
6 – Para a despedida fica o balanço. 4 jogos, uma vitória a uns tristes e mortos de fome que jogaram aberto connosco, 2 empates e uma derrota. Para mim é manifestamente pouco. Elogiam a nossa defesa que só sofreu um golo, eu lamento só termos marcado à Coreia do Norte. De resto, sobram as histórias mal contadas, as bocas mandadas para serem corrigidas depois, o costume. Lá voltamos com as mãos a abanar e envoltos no nevoeiro de intrigas do costume. Deve dar para aguentar as rotativas dos jornais por uns tempos, pelo menos até começarem os jogos de pré-época do Benfica e voltarmos a ver futebol a sério.


Há dias estranhos. Estou a falar a sério, há dias em que quase nada faz sentido a não ser a certeza que o tempo vai continuar a passar e vai levar-nos para outro tempo qualquer. Ontem foi um desses dias.


Cheguei a casa sabendo que não ia lá ficar, saí sabendo que não tinha para onde ir. Como costume nestas situações, acabei nas margens da Ria Formosa. Subi do T à marina, desci no sentido inverso. Andei, dancei e nadei junto à Ria e, depois de um pôr do sol inebriante, decidi que era dia de me estragar com mimos. Fui a um restaurante Indiano cá do burgo e sentei-me na esplanada à espera de uma refeição.


Fui atendido por um Indiano simpático e porreiro. Depois de pedir a minha galinha grelhada com cebola e pimento recostei-me na cadeira a assistir à montagem dos festejos do S Pedro que se iam realizar no largo em frente à esplanada do restaurante.


Chega uma empregada morena com a minha taça de vinho e com uma cesta de pão de alho. Três dos seus dedos vão estrategicamente colocados dentro do cesto, com uma das suas unhas a roçar eroticamente numa das fatias. É óbvio que não vou comer isso, mas hoje também não estou com paciência para lhe esfregar o livro de reclamações no seu sorriso lindo.


Entretanto no largo, um tipo com um aspecto horrível faz testes de som. Coloca um CD do Quim Barreiros e, perante uma acéfala salva de aplausos, eleva o volume até ao expoente do desespero. Começa o meu inferno. Depois do inevitável snif no bacalhau da Maria, vem um gajo qualquer com voz de tuba desafinada a ameaçar lamber uma coisa qualquer a uma emigrante, espero que fosse o passaporte. De seguida continua com o Zé Cabra a explicar que deixou tudo por ela, incluindo a voz e a letra da música. Tudo é mau demais para ser real. Estou num filme do Fellini, produzido pelo João César Monteiro e com banda sonora do Zé Cabra.


Chega a comida. Talvez agora tudo melhore um pouco. Mas não, este foi apenas mais um dos meus pensamentos imbecilmente optimistas. Três putos invadem o espaço nas suas bicicletas a tocar vuvuzelas ao ritmo do desvario. Juntos, com a música pimba por trás, soam a uma manada de rinocerontes fêmea com cio a ser violadas por uma matilha de caniches maníaco-depressivos. Fui barbaramente extirpado da minha terra natal e enxertado no sétimo círculo do inferno. Devoro a comida à velocidade dos movimentos peristálticos do meu esófago e chamo a morena para recolher o muito que sobrou e para me trazer um café para que possa fugir para longe. No auge da sua boa vontade ela recolhe a travessa do frango, bem como a do arroz que transporta num ângulo de fazer corar de vergonha a torre de Pisa e deixa atrás de si um rasto que torna a experiência de Hensel e Gretel numa pífia tentativa de cartografar um caminho. Volta. Segura o cesto do pão intocado e ao tentar agarrar o copo de vinho quase cheio com as suas garras disformes, entorna-o na mesa e por cima de mim. Ao som da mais medonha pimbalhada e dos três putos a guinchar como se fossem anjos do apocalipse deito-lhe um olhar de puro ódio, temperado por ira e polvilhado por bocadinhos de raiva assassina. Consigo balbuciar um “não se preocupe, azares acontecem” que soa a “oh sua burra de merda, desaparece-me da frente antes que te foda o focinho à biqueirada”. Afasta-se. Enquanto sinto a tensão arterial a entrar na ionosfera, volto a concentrar-me no espetáculo Dantesco que se desenrola no largo.


Entretanto algo muda. Um dos javardos atrapalha-se, a bicicleta foge ao controle da sua vontade, dança em desequilíbrio  e ambos se espalham no espaço residual entre duas mesas. Nunca saberei descrever a beleza ergonómica daquele movimento, nunca serei capaz de citar uma lei física que explique como ele deu origem à sequência infindável de ocorrências que se seguiram, como se uma peça de dominó empurrasse inexoravelmente as restantes em direcção à eternidade.


A bicicleta estatela-se, o puto cai, a vuvuzela voa, as mesas tremem. Numa delas a mesa de mistura dança mal humorada como se de um protesto laboral se tratasse, o leitor de CDs, esse, entrega-se à inevitabilidade da força gravítica e beija a calçada num estertor de paixão e de morte. Na mesa do lado uma pilha de CDs mergulha quixotescamente em direcção ao instrumento que estava preparado para lhes dar sentido. O puto está no chão. Tem por cima a bicicleta, bem como uma miríade de CDs, que num strip tease final se despiram das suas capas de plástico, por baixo está o leitor, agora reduzido ao silêncio. Num dos cantos do largo, levanta-se uma mulher que não tem mais de 40 anos e não aparenta menos de 60. Desloca-se com a graciosidade de uma retroescavadora e, ao chegar junto do puto choroso, aplica-lhe com a precisão cirúrgica de uma motosserra um par de bofetadas que, se houvesse justiça neste país, seriam classificadas pelo IPPAR como património cultural. Ao mesmo tempo, do mesmo local, levanta-se uma velhota com idade para ser tia-avó do Matusalém e desata a xingar os outros dois putos num idioma incompreensível para quaisquer ouvidos humanos.


A mãe berra, a velha rosna, o dono da aparelhagem lamenta-se, os ranhosos dos putos choram. Eu, bem, eu rio interiormente com uma alarvidade sádica. O leitor de CDs calou-se, as vuvuzelas foram sonoramente exiladas, os putos foram chorar para o beco. Chega o meu café ao mesmo tempo que o homem do som se rende às evidências e liga o rádio. Ouço a parte final do “have you seen my baby” dos Rolling Stones, de seguida sou brindado pelo “Russians” do Sting e, enquanto fumo um cigarro que me sabe a redenção, o Tom Petty canta-me o “cuts you out”. Fui trazido de volta à realidade depois de uma travessia por um deserto de horrores.


Pago, despeço-me do Indiano simpático e da morena desastrada. Faço-me ao caminho que ainda vou andar quatro ou cinco quilómetros antes de voltar a casa. Vou alegre e sorridente, a vida acabou por me fazer justiça. Como diz o conhecido ditado popular, “uma vuvuzela toca direito por notas tortas”.

Nó Górdio

Reza a lenda que um rei da Ásia Menor morreu sem deixar descendentes. Reza a lenda que um Oráculo qualquer previu que o futuro rei chegaria a conduzir um carro de bois. Segundo a mesma lenda já muito rezada, esse rei, de nome Górdio, amarrou o seu carro de bois a uma coluna, para que ninguém se esquecesse das suas origens humildes. A mesma lenda, já transformada numa ladaínha, diz que o tal de Górdio morreu sem descendentes (que raio faria aquela gente para se divertir ?) e que o Oráculo do costume previu que a Ásia Menor só voltaria a ter um rei quando alguém conseguisse desatar o nó de Górdio. Passados muitos anos esta história foi conhecida por Alexandre, o Grande. Segundo a tal lenda, o mesmo deslocou-se à dita cidade e, ao ver o nó dado muitos anos antes (nem quero imaginar em que estado estariam os bois), sacou da sua espada, cortou o nó, e reinou na Ásia Menor, tal como nos outros 378 territórios e países que conquistou, e sem carros de boi como adereços.
Moral da história, ou melhor, moral da lenda, o Nó Górdio fica como um exemplo de como é possível resolver problemas complicados de uma forma simples. Como devem calcular, é uma das minhas lendas preferidas, eu que tenho como uma de muitas alcunhas, "o simplificador implacável".
Detesto complicar coisas que são naturalmente simples quase tanto como adoro simplificar coisas aparentemente complicadas. Acho que vem dos tempos da matemática no ensino secundário em que a melhor coisa que me podiam fazer era pedir para simplificar funções. Continuo a considerar o acto de reduzir ao mesmo denominador para cortar, mais do que uma manha matemática uma atitude perante a vida.
O nosso dia-a-dia é como uma equação com dezenas ou centenas de incógnitas. Aceito isto, é natural que vivamos no reino do caos já que vivemos rodeados de outras pessoas que têm os seus próprios caminhos, os seus próprios sonhos, os seus muito próprios medos. Respeito isso, não me peçam é para submeter a minha simplicidade a confusões alheias.
Mas afinal de contas, serve isto tudo para quê ? Para vos dizer que tenho à minha frente um nó górdio que não ata nem desata e estou com dúvidas sobre o que fazer a seguir (sim, sou dos que têm dúvidas de vez em quando e se pensam que sou fraco ou inseguro por isso, peguem nos vossos rabiosques e desapareçam-me do blog e da vista seu bando de otários(as)). Dava-me jeitinho um conselho sabem, não é que o vá seguir, mas pelo sim pelo não sabia-me bem.
Olhem, deixem lá, vocês têm razão. Vou mas é afiar a espada.

Rostos

Li esta manhã no Diário de Notícias uma citação de Abbas Kiarostami que não me sai da cabeça. Segundo ele, "Os rostos são as paisagens mais dramáticas de todas".
Não discuto. Não estou em posição de o fazer, e, mesmo que estivesse, não sou ninguém para pôr em causa afirmações deste calibre, baseadas claramente em experiências de vida que não conheço nem compreendo. No entanto, o Kiarostami que me perdoe, mas direi mais algo sobre o assunto. E fá-lo-ei por um único e simples motivo, o teu rosto. Já que tenho uma arma poderosa para embirrar com um citação que, como escrevi há segundos atrás, não ia discutir, nada como usar essa arma e esperar que a minha contradição passe despercebida.
O teu rosto é simples. Não tem nada de exuberante nem de espampanante, tal como as melhores obras de arte, é nos pormenores que se reconhece. Não é demasiadamente redondo nem angularmente quadrado. Não é esguio e comprido, nem reduzido e delgado. É apenas o teu, e sinceramente, não poderia ser de mais ninguém, tal como não poderias ter outro diferente. Costumo perder-me em segredo nos teus cabelos. São longos mas não demasiado compridos, mais do que encaracolados, são simplesmente revoltos. Por mais que os tentes pontualmente esticar, não funciona. És daquelas pessoas cuja alma se apropriou de partes do corpo, tendo o processo começado exactamente pelos teus cabelos. Transmitem muito mais de ti do que as tuas palavras. Não são só revoltos, são livres, enérgicos, por vezes até caóticos, mas vê-los descer dessa tua cabeça brilhante, vê-los acariciar o teu rosto com essa melena branca envergonhada é mais do que estou habituado a pedir quando peço por momentos de simples beleza.
Depois há as tuas sobrancelhas, adoro-as. Essas sim dão bem nas vistas. Parecem traçadas a carvão num quadro de óleo. Firmes, imponentes, por vezes dá a sensação que foram cavadas como uma trincheira. São elas as principais responsáveis pelo tal ar de intimidação que dizes transmitir às pessoas. Para mim são apenas um escudo. São um escudo protector para os teus olhos, que de tão naturalmente castanhos, só se afirmam pelo olhar. Que seria desse teu olhar cheio de ternura envergonhada se não se pudesse esconder atrás das tuas sobrancelhas ? Que imagem conseguirias passar de ti mesma se todas as pessoas te conseguissem olhar bem no fundo do teu olhar sem que nada te protegesse ? Considero-me um privilegiado por fazê-lo frequentemente, mas sinceramente mereço-o. O teu olhar é o calcanhar de Aquiles de toda a tua fortaleza. Não foi fácil percebê-lo, mas foi lindo descobri-lo. Todas as pessoas num dado momento deixam que venha à superfície o que têm de mais valioso guardado num cofre mágico a que chamam de coração. Nem todas têm contudo a noção que o fazem, nem todas conseguem compreender que não é possível esconder segredos para sempre. Os teus, é através do olhar que se revelam, e quando isso acontece, só apetece mergulhar, viver, sonhar e morrer nesse olhar.
Podia ainda falar da tua boca e da forma como promete fontes de água inesqueciveis para quem a beber. Podia falar do teu nariz que goza com o conceito Aquilino das Deusas Gregas, podia ainda refugiar-me nas tuas orelhas onde tantas vezes quero entregar palavras que só para ti inventei mas não o vou fazer agora. Já só consigo pensar nas tuas rugas de expressão que se espalham concêntricas na tua face quando sorris. São responsáveis por esses risos e sorrisos abertos e envolventes que conseguem inundar uma sala, com jeitinho, aposto que conseguiriam inundar uma vida.
É como te digo, o teu rosto é uma daquelas obras de arte que sendo singelo no todo é magnífico nas várias partes que o constituem. Como já disse, não sou ninguém para pôr em causa a citação de Kiarostami, mas, ninguém me pode contradizer quando eu afirmar que, se ele te conhecesse, a citação teria sido : "Os rostos são as paisagens mais sublimes de todas".

cavaquices

Como se devem ter apercebido, não fui um grande fã de José Saramago. Independentemente deste facto, reconheço-lhe uma grande qualidade literária e não tenho o mínimo problema em assumir que foi um homem que elevou e dignificou o nome de Portugal. Neste sentido só posso deixar um comentário à ausência do Presidente da República durante as exéquias do escritor prémio nobel. Cavaco é um vulgar palerma, um triste ressabiado que usa o cargo máximo da nação para acertos de conta pessoais. Tem uma tacanhez provinciana, uma ausência de dimensão de estado e o seu consulado é um escarro nas paredes do palácio de Belém. O homem saiu de Boliqueime mas Boliqueime nunca saiu dele. Houvesse uma figura de peso a enfrentá-lo nas presidenciais e ia para o caixote do lixo da história mais depressa do que engolia uma fatia de bolo rei.

A banheira de Arquimedes

A ciência também tem os seus mitos. Não basta o ritual do método científico que pouco significa, como também existem histórias quase mitológicas que funcionaram e funcionam como inspiração para gerações e gerações de cientistas.
Arquimedes pertence a esta galeria. Foi um matemático, astrónomo e inventor que viveu em Siracusa, então uma cidade Grega. Arquimedes foi o primeiro a calcular o número Pi, abriu as portas à hidrostática e à mecânica de fluídos e criou o princípio das alavancas, na sequência do qual produziu a famosa citação "Dêem-me um ponto de apoio que eu levantarei o mundo", citação essa hoje aplicada por José Mourinho sob a forma de "Dêem-me uma equipa de futebol que eu levantarei uma taça".
Agora a história de Arquimedes que virou um verdadeiro mito passou-se quando lhe foi colocado um problema quase insolúvel. Um manda chuva lá do sítio pediu-lhe que descobrisse uma forma de se certificar que a coroa em ouro que tinha encomendado era mesmo 100% ouro, ou se estava mafiada por metais mais baratuchos. Conta-se que um belo dia estava Arquimedes na sua banheira quando foi atingido pelo relâmpago da inspiração, ao que saltou banheira fora e desatou a correr nu pelas ruas de Siracusa aos berros "EUREKA, EUREKA". Este mito passa-nos a ideia que as inovações e descobertas científicas dependem muito da inspiração do momento, como se num instante mágico tudo se resolvesse nas esquinas perdidas das nossas sinapses cerebrais, como se raios de luz invadissem imparavelmente o caos de escuridão em que nos encontrávamos. Hoje em dia, tenho como opinião que os avanços e descobertas científicas dependem muito mais de planificação, perseverança, capacidade de resistência ao falhanço e estoicismo para aguentar bolsas congeladas há quase 10 anos, bem como total ausência de protecção social de que padecem os nossos jovens cientistas. É claro que é confortante e inspirador este mito. Conforta pensar que num momento tudo se pode desbloquear, e, conforta ainda mais, pelo menos numa ou duas dúzias de casos que conheço, imaginar jovens cientistas a correr nuas pelos campus universitários a gritar "EUREKA, EUREKA".
A realidade é que o mito de Arquimedes focado no final, na resolução do problema tende a fazer-nos esquecer que o processo, o caminho para lá chegar, esse sim é que é fundamental. Em última análise, preocupamo-nos demasido com o fim e tendemos a descurar o meio, o que torna tudo o resto possível.
Afinal consegui descobrir isto.
EUREKA !


Tive uma infância privilegiada. Vivi dos nove meses aos oito anos e meio perto de Oeiras numa urbanização chamada Alto da Barra. Era formada por um conjunto de vários prédios dispostos em U com campos relvados recheados de árvores no meio. Cada prédio tinha 6 lotes, cada um com 8 andares e dois apartamentos por andar. Eu vivia no bloco A, no lote 5, 1º esquerdo.
Na parte traseira do meu prédio havia um descampado enorme, onde todos os disparates eram possíveis e onde vieram a construir um centro comercial, construção essa que teve a minha decisiva influência, como verão em textos futuros. Para lá do Alto da Barra estava a famosa marginal. A marginal era um instrumento de tortura à margem das convenções de Genebra para todas as pessoas que se metiam nela na linha de Cascais, na esperança de um dia chegar ao emprego, sim, naquele tempo costumávamos ouvir falar de auto-estradas e de vias rápidas mas eram conceitos muito estranhos, como se de mitos urbanos se tratassem.
Do outro lado da marginal estava a felicidade. A felicidade nesses tempos adquiria a forma de uma praia com um pedaço de areia rodeado de rochas, com dois imponentes esgotos, um de cada lado, a vigiar o que algumas centenas de pessoas conseguiam fazer naquele pequeno espaço inundado em porcaria.
Antes de chegar à praia tínhamos que descer umas escadas e antes de chegar a essas escadas passávamos por uma espécie de café/geladaria com uma esplanada enorme. No caminho para essa esplanada havia uma pequena rotunda relvada com uma placa pré 25 de Abril que nos recordava tudo o que era proibido fazer e um pouco mais à frente havia uma piscina da qual também vos falarei. Hoje, o que interessa é ir ao parque infantil, que ficava à direita de quem seguia na direcção do tal esgoto gigantesco com areia no meio.
Conheci muitos parques infantis na minha vida, alguns como criança, outros como criança com mais idade, mas aquele foi sem dúvida o melhor. Quando entrava tinha ao meu lado esquerdo uma construção a imitar um pombal, ou talvez fosse mesmo um pombal do qual os pombos se tinham demitido, talvez por alguma reivindicação laboral. Ao lado direito estava um cavalete que eu insistia em trepar apenas para descobrir que se pode cair sempre de forma diferente magoando partes diferentes do corpo, ao contrário dos gatos. Se andasse em frente passava por umas figuras de ferro retorcidas que davam a um bidon de combustível vazio o aspecto de um cavalo com trissomia XXI, mas a malta nem se importava muito com isso, giro giro era passar as tardes em cima das ditas figuras cavalares a imitar as perseguições a cavalo que víamos no Bonanza. O facto de nunca sairmos do lugar não interessava nada, às vezes trocávamos de cavalo para não serem sempre os mesmos a andar atrás dos outros. Depois dos cavalos estavam os baloiços. Uns pequeninos como se impunha, outros enormes, como se desejava.
A seguir aos baloiços estava uma das extremidades de uma réplica maravilhosa da ponte 25 de Abril, ponte essa que atravessava longitudinalmente todo o parque e nos levava à zona dos escorregas, onde existiam alguns pequenos e 4 deles enormes, aí com uns 10 metros de altura que então pareciam ser quilómetros. Um dia alguém retirou as tábuas que faziam de piso nessa ponte, tendo ficado apenas a armação em ferro. Como devem calcular isso tornou a ponte muito mais perigosa, e como tal, muito mais interessante. Pergunto-me quantas das autoridades daqueles anos ainda estariam presas se a ASAE então existisse, já para não falar do Daniel Sampaio.
A história de hoje, depois desta enorme introdução, é sobre os baloiços. Eu devia ter a minha meia dúzia de anos, ou talvez nem sequer isso, tenho boa memória mas também não exageremos. Não faço a mínima ideia onde estavam os meus pais ou os meus avós. Provavelmente estavam na tal esplanada, mas também não é de excluir a hipótese de eu ter saído do alto da barra para ir ao parque sem ter avisado ninguém, algo que acontecia com mais frequência do que a que os meus pais sonhavam nos seus piores pesadelos. Como de costume estava num dos baloicinhos a treinar essa arte que tinha aprendido há pouco tempo que se baseava em pequenas oscilações no posicionamento das pernas para usar a força gravítica com o objectivo de produzir um movimento pendular, vulgo, andar de baloiço. Enquanto me divertia com isto, olhava de soslaio com uma inveja e admiração brutais para um grupo de miúdos enormes ( 9 ou 10 anos ) que estavam nos baloiços maiores. Esses foram talvez os meus primeiros heróis. Eram grandes, seguros de si. Pouco depois de se sentarem nos baloiços dos crescidos já rasgavam a atmosfera a velocidades estonteantes. Davam gritos orgulhosos quando subiam em direcção ao céu, e quando desciam de novo sabiam que esse recuo era apenas a oportunidade para lançarem uma nova investida. Muitos anos antes de o mundo se ter apaixonado pelo Tom Cruise no Top Gun, já eu era fã desses “ases indomáveis” que ainda tinham a lata de, passado algum tempo a baloiçar se lançarem no ar num voo imparável para aterrar na areia que servia de solo aos nossos sonhos. Como eles eram fortes e audazes, como eu queria tanto ter 10 anos para ser assim.
Mas, nesse dia algo mudou. Fartei-me de esperar e quando eles se foram embora, sim, sempre tive medo de mostrar coragem em público, larguei a segurança do baloicinho e aventurei-me em territórios até então desconhecidos. Com alguma dificuldade nada inesperada sentei-me num dos baloiços grandes e lá vai de mexer as pernas. Não custou tanto como pensava. Passado um bocado já atingia velocidades que nunca antes tinha conhecido. Agarrava-me às correntes como um naufrago a uma bóia e voava e voava como naquela música revolucionária sobre gaivotas livres. O que mais me lembro é da sensação daquela pontada maravilhosa no estômago à medida que desafiava a gravidade em direcção ao infinito. Não queria parar. Aquilo era demais, achei que estava a viver o momento mais importante da minha vida. Entretanto, decidi que mesmo já sem fome queria comer a refeição completa. Estava tudo a correr tão bem mas já que tinha chegado ali, ia até ao fim. Decidi que também queria saltar. Era a conclusão lógica, se conseguia andar no baloiço grande como eles, também conseguiria saltar como eles. Então a meio de uma subida, largo as mãos das correntes e empurro o corpo para a frente. Por leis Físicas que vim a aprender muitos anos mais tarde, em vez de ser impulsionado em frente, fui para cima. O baloiço em vez de se retirar para o seu lugar como forma de homenagem à minha coragem, acertou-me em cheio na nuca, como que para castigar a minha arrogância.
Levantei-me completamente tonto e com uma dor na cabeça como nunca tinha sentido, e apesar de a ter partido já três vezes, também nunca esqueci. Olhei à volta, o parque estava quase vazio. Pelo menos não tinha que suportar a vergonha na presença de outras pessoas. Fui esconder-me em baixo da ponte a chorar (sim, eu fui um puto muito piegas) e depois de ter passado a dor e a vergonha, fui embora com o rabo metido entre as pernas.
Mas voltei. Não sei se no dia seguinte se alguns dias mais tarde. Sei que voltei e mais cedo do que tarde, aqueles baloiços também já eram meus, e sim, aprendi a voar sozinho, e sem marrar com a cabeça no baloiço. A partir daí o problema passou a ser fugir dos meus antigos heróis quando eles apareciam aos urros histéricos a dizer que aqueles baloiços eram deles e não para bebés.
Voltarei com mais histórias. Até já.
PS – Obrigado Neide. A nossa conversa sobre o parque infantil da ilha da Armona foi a causa disto. Beijoca.

Os três mosqueteiros

Não vou falar do fabuloso romance do Alexandre Dumas, nem das suas inúmeras sequelas. Não vou sequer falar do Dartacão que animou as tardes da minha infância. Vou falar apenas de três pessoas, aliás, de duas que fazem parte de um grupo de três.

Somos amigos, apenas isso. Escrevo isto com a ligeireza de quem por um momento se esquece que pode haver algo mais forte do que a amizade. Conhecemo-nos há muitos anos. Há tantos que nem sequer sei se quero contar. Não nos vemos diariamente, não temos aquela lidação intensiva que muitos pensam ser condição sine qua none para se reclamar uma relação como de amizade. Temos apenas uma rotina em comum, um encontro anual em Olhão no festival do marisco.

Ultimamente tivemos uma grande ajuda que veio pela forma do Facebook, essa poderosa rede social de quem muitos falam bem e muitos outros falam mal. Por um passe de engenharia informática universalista, passámos a estar juntos todos os dias. Conseguimos recuperar a oportunidade de saber a cada minuto o que se passa com cada um, voltámos a descobrir quase à velocidade do pensamento o que estamos a passar, as músicas que queremos ouvir, os poemas que nos apetece recitar, as pessoas que ousamos amar.

Mas afinal quem são estes três artistas que por aqui andam a descobrir-se e redescobrir-se em direcção ao infinito ? Bem, um sou eu. Já me conhecem, não me vou descrever porque detesto falar de mim, como estão cansados de saber. Além disso, o assunto não é muito interessante, sou o vulgar totó que todos conhecem. Agora em relação aos outros dois, aí merece perder algum tempo.

O Nuno é um herói. Não estou a gozar, é um daqueles homens que estamos habituados a conhecer nos livros de histórias e nos filmes épicos. É um profundo idealista que, apesar de ter o corpo em chagas de batalhas e derrotas passadas, continua a lutar, como se nada mais soubesse fazer. O Nuno tem a coragem típica do desespero, ataca sonhos e objectivos com uma garra estranha para os dias que correm e, nem sempre, se dá ao trabalho de se proteger do que possa correr mal. Se D Quixote voltasse à existência por um fabuloso passo de mágica, seria uma pálida caricatura do meu Amigo Nuno Pereira. Esse gajo limitou-se a carregar sobre moinhos depois de comer uns cogumelos manhosos, o Nuno desafiaria exércitos temperados pelo fogo do inferno com uma rosa nas mãos e um sorriso nos lábios. Nele há acima de tudo vontade. Uma vontade inebriante de conquistar o impossível, uma força de vontade que se alimenta de derrotas passadas, uma entrega que só pode ser descrita por aqueles e aquelas que um dia foram capazes de se deitar à sombra da segurança que ele tanto tenta oferecer a quem ama. Sim, porque em última análise, depois de tudo ter sido pesado, analisado e escalpelizado, é o Amor a força que o impulsiona. O Nuno é um dos homens mais perigosos que conheci na vida. Ele é perigoso porque acredita firmemente no que diz, ele diz sinceramente o que sente e sente absurdamente aquilo por que luta.

Depois ainda há a Sandra. Para a Sandra é ainda mais difícil arranjar adjectivos. Ela é o elemento aglutinador deste nosso grupo informal. É a verdadeira líder, a voz da racionalidade quando ela faz mais falta. É claramente a mais inteligente de nós, o que não quer dizer que sinta menos do que nós, muito pelo contrário. A Sandra navega pela vida sem a intensidade das nossas cargas suicidárias de cavalaria, ela consegue estar presente de uma forma menos emotiva, mas nunca menos emocional. Ela consegue manter e mostrar um rumo quando tudo à nossa volta parece estar perdido. Nós podemos ser o vento que impele as velas ou a força que faz mover os remos, mas ela é a bússola e o astrolábio que nos dão o rumo. Por vezes podemos vê-la calma e quase impassível perante situações de risco ou de stress, e nesses momentos só quem não a conhece é incapaz de ver no brilho dos seus olhos o fogo que lhe arde no coração. A minha querida Amiga Sandra Paulo pode por vezes parecer feita de gelo mas é uma daquelas estátuas de fogo esculpidas nas entranhas da Terra.

Juntos somos perfeitos porque desenvolvemos uma extraordinária capacidade de nos abastecermos uns aos outros do que precisamos para carregar aos ombros o peso dos dias. Um partido político juntou-nos há uns anos atrás, mas o que nos uniu é bastante mais forte do que isso. São anos de experiências, de partilhas, de risos e lágrimas, de euforias e neuras partilhadas. Há uma miríade de momentos que foram eternizados porque partilhados. Há uma infinidade de experiências que contribuíram para fazer de nós quem somos, mas que, por partilhadas, fizeram deste grupo uma irmandade rara e valiosíssima.

Hoje sei que posso arriscar. Sei que posso perder, sofrer, sei que por muito mal que esteja, os outros dois estarão comigo. À distância de um click, à velocidade de um pensamento. Sei, e eles também o sabem, que tenho uma rede para me amparar das quedas, uma bóia para me salvar do naufrágio. Tenho no Nuno a força, a garra e a determinação que me lembra que a força de vontade, a perseverança e o Amor podem mudar o mundo. Tenho na Sandra a razão para travar os meus mais entusiásticos impulsos e o fogo que me vai aquecer quando o frio da derrota me invadir todos os poros da alma.

Tenho-os comigo e eles têm-me para si próprios. Enquanto eles ficarem, eu não saio. Enquanto eles existirem, eu não desapareço.

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