Diz-se que o criminoso volta sempre ao local do crime. Assim foi. Não tive à minha espera polícia nem exército, mas crime cometido quando lá estive não foi muito grave. Foi uma terça feira, a de carnaval. Tal como na outra terça feira, a de início de Novembro, apenas um dos restaurantes estava aberto, o do Toy.
O espaço estava atolado de gente, a hora era tardia para almoçar, 14h30, o que nem foi muito grave porque no Alentejo o tempo corre mais devagar e a tolerância para quem não segue os preceitos temporais estabelecidos é maior.
Desta vez, ao contrário da outra, fui acompanhado. Não levei o meu chapéu preto, não passei o tempo a escrever e, além disso, o comprimento do meu cabelo foi reduzido a 1/5. Vi 3 caras conhecidas da última aventura. Caras de homens já não invisíveis à memória mas que ainda assim pouco fizeram além de um gesto indistinto com a cabeça. Não me reconheceram, pensei eu, dadas todas as diferenças que acima descrevi.
Quem me reconheceu claramente, apesar de não saber de onde, foi a senhora da mesa do lado. Assim que entrámos olhou-me fixamente e passou o resto do tempo que esteve presente a olhar para mim e a segredar à filha que estava ao seu lado. Não faço ideia de quem seja e duvido que algum dia venha a saber. Calculei que fosse natural visto não sermos clientes habituais da casa. Uma espécie de reconhecimento imediato dos dois antigénios presentes num ambiente assepticamente reconhecido. Mas não. Não foi isso. Ou então não era Alentejana. Os Alentejanos são os outros três que me reconheceram mas, dada a presença de alguém que não pertenceu ao microcosmos da experiência anterior, optaram por aquele silêncio ausente entre comparsas.
Minha Senhora, não sei quem é nem nunca virei a saber, mas tem claramente algo a aprender com os seus conterrâneos. Eles sabem marcar presença ausentando-se, eles souberam aparecer numa noite de Novembro e manter-se desaparecidos num almoço de Fevereiro.
Definitivamente, gosto mesmo desta terra. Não foi a primeira vez que lá fui e sei que vou voltar.
Além disso as presas de porco preto estavam divinais !

Olhão, 16/2  23h45

História

Se há amor não cumprido na minha vida é o amor pela História. História mesmo. A ciência que nos ajuda a conhecer o passado para melhor compreender o presente. Desta vez não estou a falar das estórias que tanto gosto de contar e recontar até ao expoente do insuportável, cumprindo o meu destino genético que o meu pai me legou.
Estando eu em maré de reequilíbrios e de transformações, decidi que não mais viverei com um "amor platónico" a enfernizar-me o juízo, nem com a dúvida do que poderia conseguir se tivesse coragem para arriscar lutar pelo que quero.
Vou voltar a estudar, e desta vez será História. O e-learning criou possibilidades inimagináveis e a American Military University chamou-me a atenção. A atracção dos diferentes cursos é fulminante e a sedução dos mestrados então é irresistível.
Só me falta ter a certeza do reconhecimento da Universidade, juntar 4.500 dólares e decidir se aposto no Mestrado em História Americana ou se no outro que me tirou o sono, o Mestrado em História Militar.
Sei que desta vez nem vou tentar inventar desculpas para não o fazer. Sei-o com a mesma certeza com que sei  que sou capaz.
Vou voltar aos estudos porque o saber não ocupa espaço, como me ensinaram há muitos anos. Vou voltar a estudar porque preciso de aprender mais e quero ter mais coisas para poder ensinar. Vou voltar à Universidade, mesmo que com um oceano de distância, porque necessito de contactar com pessoas mais inteligentes do que eu, ou pelo menos que saibam coisas diferentes das minhas, como necessito de oxigénio para as minhas mitocôndrias.
Vou voltar a estudar porra ! Felicitem-me ou façam soar requiems à minha sanidade, não quero saber.  

As três semanas de afastamento do blog não corresponderam a três semanas de afastamento da escrita. Esta nova coluna de “Passeios e Vagabundagens” é dedicada exactamente aos sítios por onde tenho andado ou por onde passei, e sobre os quais escrevi mas as férreas leis da preguiça adiaram a publicação.

Começo por Santa Clara de Sabóia. Aqui tenho uma das minhas histórias mais carismáticas. Numa madrugada de inverno de 1999, voltava eu de um fim de semana com a namorada no Porto. O comboio azul, como se chamava, saía da Campanhã às 21 horas e deixava-me em Messines por volta das 7 horas do dia seguinte. Nessa viagem adormeci, como de costume, só que dessa vez acordei subitamente com uma paragem do comboio. Acto reflexo, agarrei o saco e saltei porta fora, já com o comboio a arrancar. Enquanto respirava fundo, o meu cérebro começou a processar conscientemente o que me rodeava. Foi nesse momento que vi que onde devia estar escrito “Messines-Alte” estava escrito “Sta Clara de Sabóia”, e na direcção onde deveria estar a minha escola, estava um pocilgo.

A dimensão titânica da minha burrice atropelou-me à velocidade da luz e, enquanto vomitava impropérios contra mim próprio e inventava em voz alta metáforas para a minha estupidez, uma senhora aproximou-se. Depois de me perguntar o que se passava e de eu ter respondido, explicou-me que trabalhava na passagem de nível, que a casa dela era ali perto e que podia ir para lá para tomar o pequeno almoço com o marido e os filhos que deviam estar a acordar. Bem dito, melhor feito. Enfiaram-me pelas goelas abaixo um balde de cevada e umas tibornas tão quentes como maravilhosas. No final dessa experiência religiosa, enrolei-me numa manta e deitei-me num sofá onde voltei a adormecer. Por volta das 10 horas, já com metade da manhã de aulas perdida, meti-me numa automotora vermelha que se queixava de todas as articulações e se deslocava à velocidade das sinapses cerebrais da Lili Caneças e fui para Messines onde a rotina diária me esperava.

Júlia era o nome da Senhora. Nunca mais a vi, mas também nunca me esqueci dela.

 
Alfa Pendular - 27 /1 - 8h45

Paranóias sem sentido

Acho que foi uma apoteose que ocorreu antes do começo do início. Há quem diga que aí nasceu deus. Há até quem diga que foi deus que lançou os dados que a tudo deram origem.

Sei que depois desse momento inicial e iniciador de tudo, apareceu o tempo. Foi muito antes de nós, muito antes da nossa capacidade e necessidade de o medir, compartimentar e quantificar, já o tempo existia.

Um dia aparecemos. Aparecemos como fruto de uma evolução perdida nas brumas do tempo e não tardou a que descobríssemos que precisávamos de o controlar para não o temer. Criámos os relógios. Instrumentos que usam o tempo para produzir mais tempo, e mais tempo, e mais tempo. E descobrimos que no fim do tempo, o Amor resiste à morte.

Julgámos obter segurança crendo na existência de um relojoeiro supremo, o dono do tempo, o artesão do infinito. Acreditámos que a sua existência traria o equilíbrio necessário a quem vive preso entre o tempo que passa e o tempo que vem. Desejámos sacudir dos nossos ombros curvados a responsabilidade de viver plenamente, porque não podia haver vida plena não controlando o tempo em que ela se desenrola. E o relojoeiro supremo continuaria a olhar pelo tempo. E os nossos relógios continuariam a usar o tempo para produzir mais tempo, e mais tempo, e mais tempo. E o Amor continuaria a ultrapassar a morte.

Depois descobrimos ainda que podíamos dividir o tempo em passado, presente e futuro. Aí sujeitámo-nos à ditadura da nossa criação e tornámo-nos escravos, não de um tempo, mas dos três. Aí bebemos o fel da perda de um tempo que se esvaiu por entre os dedos e no passado ficou. Aí entendemos a efemeridade do tempo que está a passar. Aí decidimos esperar com ansiedade o tempo que há de vir adiando para um futuro próximo ou distante o que não fazemos hoje, por nós e/ou pelos outros. E os relógios continuam a usar o tempo para produzir mais tempo, e mais tempo, e mais tempo. E o Amor continua a ser mais forte do que a morte.

Sentado numa cama de um hospital sou fulminantemente assaltado pelo percurso que me trouxe até aqui. Com dois comprimidos de sabor horrível a dissolverem-se debaixo da língua e uma porcaria qualquer espetada numa veia olho para um espelho distante revelado por uma cortina que se abriu e não me reconheço. Já não sou quem fui e acho que nunca me tornei no que esperei vir a ser. Julgo não passar de uma contradição cronológica entre tempos perdidos, mas ainda assim, sou eu, em toda a humildade das minhas virtudes e em toda a imponência dos meus defeitos.

Olho para trás e vejo o quê ? Os campos relvados do Alto da Barra estão a arder. A terna placidez da Ria Formosa está a arder. O campus de Gualtar está a arder. A estação da CP da Sra da Hora está a arder. Lagos está a arder. As falésias de Aljezur estão a arder. Por entre o fumo e o fogo, uma nuvem de cinzas envolve-me. Cada uma é um pedaço de memória vivida mas não esquecida. Sorrio com a compreensão póstuma de que essas memórias são apenas quem eu fui, já não são quem eu sou.

Está a chegar a hora. Está próximo o momento de inverter o rumo, de mudar de caminho. É chegado o momento de romper com o paradigma electroquímico segundo o qual cargas eléctricas diferentes se atraem e cargas iguais se repelem. Chegou o tempo de compreender que por muito que dois protões se tentem afastar, quando juntos no núcleo, a força necessária para os separar é infinitamente superior.

Hoje regresso ao futuro. Talvez ainda não regresse hoje, mas pelo menos sei que hoje deixo de me afastar dele. Quando sair daqui, desta cama, deste hospital, desta cidade que nada me diz e à qual me condenei a trabalhar, vou procurar os “meus”. Os que estiverem presentes ficam, os que estiverem ausentes vão, os diletantes, que continuem a diletar nos seus destinos.

O amanhã vai chegar diferente. Sei-o, como sei que os relógios continuarão a usar tempo para produzir mais tempo, e mais tempo, e mais tempo. Só que desta vez também sei que não estou condenado ao eterno e etéreo destino de chegar tarde demais para os deuses e cedo demais para os homens. E continuo a saber que o Amor sobreviverá à morte.

(Faro, 7 para 8 de Fevereiro, entre as 3h00 e as 4h15)

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