Vizinhos

Moro num apartamento. Num quarto andar mais precisamente. A minha casa tem duas varandas, uma pequenina, daquelas onde cabe o coração, a outra bem maior, nessa cabe o mundo, pelo menos o meu. Como vivo num apartamento que fica num prédio, tenho obviamente vizinhos.
Há uma família de quem gosto bastante. Não os conheço, é claro. O meu "gosto bastante" significa que têm a capacidade de me emocionar quando me cruzo com eles pontualmente. 
Não sei que espécie de leis eles violam todos os dias, mas transpiram felicidade por todos os poros. Já o vi abrir-lhe a porta do carro uma vez, já os vi andar de mãos dadas, mas a minha preferida foi mesmo vê-lo um dia a fazer um esforço hercúleo para segurar a porta do prédio enquanto ela entrava, e digo esforço hercúleo porque ia carregado com não sei quantos sacos de compras. Há por aí umas parvalhonas adeptas de umas ideologias igualitárias manhosas e subscritoras da lei das cotas que acham isto de certeza sexista. Parece que o homem está a demonstrar a incapacidade da mulher e a inferiorizá-la por lhe abrir a porta ou querer vestir-lhe o casaco. Não vou tentar rebater os argumentos das críticas do cavalheirismo, mas, já agora , também não vou perder a oportunidade de as mandar à merda.
Ela, por seu lado, é uma doçura. Bem tento, mas não consigo disfarçar o olhar de inveja quando me cruzo com eles no elevador e ela vai com a cabeça encostada ao seu ombro com um sorriso de felicidade, como se 15.000 milhões de anos de evolução cósmica tivessem ocorrido apenas com o objectivo de tornar aquele momento possível. 
E depois há ainda a forma como falam um com o outro. Descer o elevador de manhã a caminho do trabalho com uma vontade imensa de ter continuado a dormir tem muito mais piada quando o faço acompanhado por um casal que se trata por "querida", "fofinho", "amor" e outras palavras maravilhosas do campo semântico do magnífico.
Eles têm duas crianças. Um petiz caladinho e sossegado com olhos de detective que parece absorver pedaços da realidade a cada olhar. A miúda é irrequieta e explosiva, daquelas que um dia ainda salta pela janela para descobrir a quê que sabe cair.
Ver os quatro juntos é um regalo para os olhos e um bálsamo para o coração.
Adoro estes meus vizinhos, mas se voltam a tocar vuvuzelas três horas seguidas, como fizeram esta tarde, juro que os mato à machadada.

Não sei quando começou. Ou talvez até saiba. Eu compreendo que tenha sido chato teres sido denunciado a meio de um roubo. Eu até aceito que haja uma vontade de vingança contra o gajo que te denunciou. Eu assumo o meu papel em toda esta novela mexicana, epá, mas porquê hoje ? Não podias ter escolhido outro dia ? Sabes onde moro, já te cruzaste comigo várias vezes na rua, por que raio tinhas que fazer isto logo hoje ?

No início foi tudo muito rápido, sem sequer ter direito a um daqueles diálogos que servem de prólogo nos filmes.

“Lembras-te de mim ? Eu disse que te ia apanhar !”

“Sim, mas olha, apanha-me outra noite porque estou com alguma pressa e tenho gente à espera.”

Dois segundos depois já estou a apanhar. Levo um soco entre o queixo e a boca, pelos vistos o gajo está a levar isto a sério e não vale a pena mandar bocas parvas. Dou dois passos atrás.

“Não achas que é melhor ter calma antes que isto piore ?”

Avança na minha direcção. Levanta a mão e soca o vazio, eu fui mais rápido desta vez. Não desiste. Mais dois socos perdem-se no ar, o terceiro acerta-me no ombro esquerdo. Empurro-o. Tenho tempo e espaço para fugir mas algo me prende as pernas, algo me amarra a vontade e fico a olhar impávido enquanto se levanta e volta a avançar na minha direcção. Nova tentativa, desta vez prendo-lhe o braço e enfio-lhe o punho no peito, por baixo do esterno, com toda a força que tenho e não tenho. Cambaleia, cai. Está com um joelho no chão a ofegar, devo ter acertado mesmo no sítio certo.

“Já percebeste que é melhor parar com esta merda antes que nos magoemos a sério ?”

No meio de um arraial de insultos viro-lhe as costas e vou-me embora.

“Estás a fugir oh maricas de merda ?”

Volto a virar-me. Agora está de pé com uma tábua de madeira na mão. Isto está mesmo a ficar complicado.

“Ainda bem que trouxeste uma muleta, vais precisar dela.”

É mais forte do que eu, não consigo estar calado nem sob ameaça. A porcaria da tábua passa ao lado da minha cabeça uma vez, à segunda acerta-me em cheio em cima do olho direito. Desta vez doeu a sério, agora sou eu que cambaleio inebriado por uma tontura súbita. Quando volto a levantar a cabeça ele está a avançar, e agora segura a tábua com ambas as mãos. Jogo o pé direito com força contra a parte que sei que lhe vai doer. Pronto, parece que isto resolveu de vez o problema. Mas não, ainda não. Dou-lhe mais um pontapé, de cima para baixo num dos joelhos. Está deitado no chão sem saber onde se agarrar por não saber o que lhe dói mais.

“Chega Nicolae”, digo-me a mim mesmo mas ignoro-me. Ajoelho-me sobre o seu peito, “Não faças isso !”, um soco, dois, três …

“Pára” pede-me ele. Quatro, cinco … Não percebes que não te estou a bater ? Não percebes que essa tua figura frágil e desprotegida me enoja ? Não consegues entender que olho para ti e só consigo ver a minha cara ?

Seis, sete … agarro-lhe os cabelos com a mão esquerda, puxo-lhe a cabeça para trás e levanto a mão direita para um soco final mas paro a meio.

Não sei o que aconteceu. Já revi a cena umas dezenas de vezes mas continuo a não compreender o que me fez parar. Pode ter sido o sabor acre do meu sangue na boca, pode ter sido o gosto amargo da adrenalina, a dor lancinante na cabeça. Posso ter tido uma epifania de humanidade no meio da selvajaria, posso apenas ter-me lembrado que estavas à minha espera.

Levanto-me e volto para casa. Olho-me ao espelho para ver o resultado da aventura. Um lábio inchado, um olho que parece uma batata mal enxertada e a mão direita vai começar a doer, é certo como um pêndulo. Não tenho paciência para tratar das feridas, que não são mais do que superficiais, pelo menos comparadas com as outras. Sento-me no sofá, troco duas smss e deito-me. Não consigo parar de tremer, não sei se de raiva, de vergonha ou de nojo. Já sei que não vou conseguir ficar aqui fechado mas ainda resisto a sair, estou no “good bye cruel world” dos Pink Floyd, o muro está definitivamente a fechar. Sou o Anakin Slywalker depois de chacinar os Jedis, vejo-me claramente a atravessar uma fronteira que não conhecia. Tenho que sair, tenho que te ver, tenho que ver alguém. Esta viagem tem que ser interrompida e tem que ser já. Não quero ver ninguém mas nunca precisei tanto de pessoas à volta. É isso, estou a precisar de ajuda, vou sair. Até já.

Ontem fui atropelado, e sem estar à espera. Foi logo pela manhã, como se fosse uma espécie de castigo por me recusar a acordar verdadeiramente antes das 10h30/11h00.
Na minha ronda diária pelos sites das escolas do Algarve descobri um vídeo feito por professores e alunos da escola secundária Francisco Fernandes Lopes, em Olhão. Foi imediato. Chocante. Apaixonante. Intenso.
Nuns breves seis ou sete minutos passaram-me à frente dos olhos seis anos de vida. Em pouco mais de 360 segundos, perdi vinte anos de vida e voltei a ser o puto que conheceu de olhos fechados todos os cantos e recantos daquela escola.
Os minutos de ansiedade antes do desejado 2º toque, as correrias pelos corredores, os jogos de futebol e as tropelias no mini trampolim às escondidas dos profs de educação física. Lembrei-me das aulas, das que gostava e das que nem por isso e dos professores e professoras que no intervalo do seu trabalho ainda tiveram tempo para fazer de mim o que sou. As partidas pregadas, as amizades criadas, beijos roubados e olhares trocados. Ontem a minha juventude voltou, tal como no Misplaced Childhood dos Marillion, e a culpa foi vossa.
Num tempo em que a educação aparece sempre nas notícias pelos maus motivos, a minha escola fez o contrário, num tempo em que a violência, o bullying, o desânimo e o protesto imperam a sua vontade, a secundária de Olhão mostrou aquilo que uma escola pode ser, aquilo que uma escola deve ser. A criação deste vídeo foi um trabalho colectivo e constitui o melhor cartão de visita que já vi uma escola fazer. Entre a visita guiada estão presentes os mais importantes espaços, estão evidenciadas todas as actividades desenvolvidas. Há uma alegria e uma dinâmica contagiantes que nos chega a fazer esquecer os problemas que afectam o ensino nos dias que correm.
Ontem fui atropelado logo pela manhã e passei o resto do dia a rir. É verdade que também me correram algumas lágrimas, mas ri-me como há muito tempo não o fazia. Cada centímetro quadrado daquela escola é para mim solo sagrado, e como não me esqueço do que lá vivi, também não me esquecerei da forma como me fizeram recordá-lo.

http://www.youtube.com/watch?v=C3ecwTdCNQc

Por um futuro Seguro


Já se falava em surdina por muitos. Já se esperava por tantos outros, os que não temem a esperança. Já se adivinhava pela onda de simpatia e empatia que o cerca. António José Seguro afirmou publicamente o que uma grande quantidade de Socialistas ambicionava, quando o momento chegar, assumirá as suas responsabilidades e será candidato a Secretário-geral do partido.
No dia em que foi assinado o acordo entre José Sócrates e Pedro Passos Coelho com vista à redução do défice e à consolidação das contas públicas, Portugal toma conhecimento da disponibilidade de António José Seguro para um dia liderar um dos partidos estruturantes da nossa Democracia, e, fruto disso, para liderar o nosso país. Na manhã em que somos atropelados pela violência das nossas dificuldades presentes, tomamos conhecimento que, o futuro pode já estar em construção.
António José Seguro tem uma dimensão política rara nos dias que correm. Recusa o discurso tecnocrático tão em moda naqueles que se apresentam como donos de soluções que nem sequer gostam de ver questionadas ou discutidas. António José Seguro rompe com o pensamento único do “tem que ser” e regressa à Política, aquela com P maiúsculo de que tanto gosta de falar. Há de facto uma forma diferente de fazer política, há uma forma de entender e debater os assuntos com a abertura de quem quer gerar soluções sem fazer imperar a sua agenda. Há, tem que haver, uma forma de alargar a governação ao entendimento e compreensão dos que são governados, ao invés de se limitar esse nobre acto a uma constante cruzada contra os que põem em causa as opções tomadas.
António José Seguro tem um currículo ímpar na defesa dos direitos dos cidadãos, tem uma agenda muito própria na luta pela despartidarização da sociedade, agenda essa fruto da sua experiência associativa e de uma crença profunda que a Democracia não sobrevive sem os partidos políticos, tal como não é completa só com eles. A reforma da Assembleia da República elaborada no mandato anterior é apenas um dos exemplos desta forma de entender que quem exerce o poder pode, tem e deve ser escrutinado pelos outros. A vontade de permitir que sejam os cidadãos a propor o Provedor de Justiça é outra assinatura reconhecível desta forma de entender uma sociedade democrática tais como são as suas inúmeras e conhecidas intervenções no sentido de haver uma cada vez maior liberdade de voto dos deputados.
Em António José Seguro o discurso populista contra o sistema e contra os políticos não tem eco. António José Seguro é um político, é-o com honra, com paixão e com ambição. Com a honra de quem tem um percurso impoluto no serviço à res publica sempre que foi chamado a exercer funções executivas ou parlamentares, com a honra de quem discordando soube fazê-lo na altura certa e nos canais próprios, ao invés de entrar no espalhafato da berraria na praça pública. Com a paixão de quem não se verga ao discurso da inevitabilidade, com a paixão de quem luta pelo que acredita e de quem acredita que pode fazer a diferença. Com a ambição de quem sente que é possível mudar para melhorar, de quem sabe que por muito popular que seja atacar o "sistema" é muito mais profícuo intervir de forma a melhorá-lo, com a ambição de quem quer um novo rumo para a nossa política, para a nossa sociedade, para o nosso país.
António José Seguro dá-se ao luxo de acreditar no que diz, e de saber porquê. Quando fala da necessidade de libertar os deputados do jugo dos directórios partidários, fá-lo porque entende que nenhuma Democracia representativa pode ser plena enquanto a Assembleia da República for povoada por "funcionários dos partidos". Quando repete até ao expoente da exaustão que os eleitores têm que conhecer o trabalho efectuado pelos parlamentares, fá-lo porque sabe que nenhum sistema político sobrevive a longo prazo ao divórcio entre eleitores e eleitos. Quando apela a novas formas de participação cívica fá-lo a pensar que todos têm o direito de intervir na sociedade, TODOS, e não só os que procuram os habituais canais políticos para o fazer.
Com António José Seguro haverá decisão e diálogo, cada qual com o seu peso e medida. Haverá procura de novas soluções para problemas antigos e investimento na melhoria da saúde da nossa Democracia. Não é de se esperar uma promessa irresponsável numa solução quase mágica das nossas dificuldades, mas, tenho a certeza, será reforçada a comunicação entre o poder executivo e os portugueses, que são, em última análise, sempre os actores principais da nossa Democracia. Em António José Seguro não há a tentação do culto da personalidade, ele é um homem de equipas e recusa a excessiva personalização do poder com a mesma veemência com que recusa a dimensão messiânica que continuamos a atribuir aos nossos líderes.
Ontem, dia 15 de Maio, senti-me melhor e mais aliviado, não só como Socialista, mas também, e acima de tudo, como Português. Por muitas dificuldades que vivamos, por muitas dúvidas que tenhamos, por muito impossível que possa parecer o caminho, permito-me a olhar o futuro com esperança. Muitos amigos, colegas e camaradas referem-me com frequência as saudades que têm de um passado em que tudo aparentava ser melhor. Com a disponibilidade manifestada por António José Seguro, saudades, eu já só consigo ter do futuro.     

Filhos do mar

Algures perdida na memória está a fundação de Olhão. De acordo com os relatos que nos chegaram, o pólo aglutinador deste novo povoado foi uma grande nascente de água potável que estava situada num terreno seco cercado por pântanos e sapais.
Por uma daquelas ironias que fazem a história, a presença de água doce possibilitou a criação de uma terra que passou a viver da água salgada.
Os Olhanenses cedo descobriram de onde viria a sua riqueza e a sua glória. E viraram-se para o mar. Inicialmente fizeram-no por uma questão de sobrevivência e, só depois, perceberam as enormes possibilidades que se abriram à sua frente.
O povo de Olhão mariscou em todos os poros da ria formosa. Pescou na ria e, quando se lançaram no mar alto, fizeram-no com a coragem do desespero e empurrados por um impulso que só a fome pode dar.
As gentes de Olhão fizeram dos seus barcos extensões das suas casas, levaram a todos os cantos do mundo pedaços de si e da sua terra. Um barco a navegar é muito mais do que um meio de transporte, está muito além de uma simples obrigação profissional.
Há quem se perca fora de casa, há quem se sinta irremediavelmente desenraizado quando a distância o separa daquele pequeno mundo que é o seu. Os Olhanenses resolveram esse problema levando com eles esse pequeno mundo. Esculpiram-no em madeira, colocaram-lhe umas velas e deixaram que os seus sonhos substituíssem o vento e os levassem inexoravelmente em direcção ao infinito.
Venceram correntes e enfrentaram tempestades. Cavalgaram ondas e rasgaram auto-estradas marítimas onde nada havia, a não ser o bafo imponente do oceano.
Tudo iniciou com a pesca, mas foram vertiginosamente arrastados para o comércio, e, para a sua extensão legalmente duvidosa, o contrabando. Entre os mares de Larache e os portos da Sardenha, entre as enseadas da Bretanha e as águas tropicais do Brasil, lá estavam eles, à espera de ser encontrados. A pescar, a vender, comprar e contrabandear.
Os Olhanenses adoptaram o mar, e, fazendo-o, tornaram o mundo o seu quintal dos fundos. Entre viagens que se perdiam num tempo de espera que não terminava, entre lágrimas e naufrágios, Olhão cresceu sob alicerces de água salgada. Foi ao mar que lançaram as suas sementes, foi do mar que colheram os seus frutos.
Hoje, alguns séculos depois, apesar de afogados em dificuldades e mareados pela, há muito decretada, morte da pesca, ainda há em Olhão alguns descendentes de um povo que um dia decidiu pescar e navegar em direcção ao futuro.

Antoine Lavoisier


Foi a 8 de Maio de 1794. Não sei bem as horas nem os pormenores da situação mas calculo que tenha sido numa praça pública, e que a mesma estava cheia de gente, afinal há poucas situações tão mobilizadoras como um espectáculo de violência gratuito. Caminhou escoltado, o poder tem a infinita fraqueza de achar que tem que sujeitar a força as suas vítimas. Foi certamente apupado e insultado. As moles humanas têm o vigor dos covardes e só na sua miríade de indivíduos a pregar a acefalia a plenos pulmões conseguem pronunciar em público o que teriam asco de pensar em privado. Acarinho o pensamento de que se manteve hirto e íntegro até ao fim. Acalento a esperança de que tenha sorrido sarcasticamente quando lhe repetiram as acusações. Sim, elas foram repetidas. Mais uma vez, a tirania necessita de humilhar as suas vítimas antes de as destruir. É uma daquelas verdades insofismáveis, quem combate a razão é obrigado a ridicularizá-la porque sabe a priori que o tempo encarregar-se-á de repor a verdade.


Neste momento está deitado. O corpo tenso molda a tábua onde se deita, tábua essa, que em tempos, como parte de um carvalho, ou de um pinheiro, nunca sonhou terminar os seus dias como figurante de uma peça tão insidiosa. Os seus olhos são vendados. Pelo menos oferecem-lhe essa opção. Mais uma vez o meu carácter idealista obriga-me a acreditar que recusou essa espécie nojenta de sublimação da parte dos seus torcionários. Não ! Não aceitou ! Lavoisier fez questão de ver a lâmina afiada da estupidez a descer sobre o seu pescoço.


Foi no dia 8 de Maio de 1794. Um pedaço de ferro desceu, escravizado pela força da gravidade e controlado pelo poder arrogante de uns arautos de um pretenso mundo novo. Numa fracção de segundo uma cabeça separou-se de um corpo tornado inerte. Numa fracção de segundo a um dos cérebros mais brilhantes da humanidade foi sonegado o direito à vida.


Antoine Lavoisier é considerado por muitos como o pai da Química moderna. Durante a sua vida, reformulou a nomenclatura química, identificou e baptizou o oxigénio e o hidrogénio. Libertou-se da lei da morte ao postular a Lei da conservação da massa, segundo a qual, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma, uma das mais populares citações conhecidas, aplicada às mais variadas situações. Pelo caminho provou que a combustão dependia da presença de oxigénio e reduziu à insignificância teoria do Flogisténio. Rasgou autoestradas em direcção ao conhecimento da estequiometria e ensinou-nos que o diamante é uma forma cristalizada de Carbono.


Mas e se Lavoisier estivesse errado ? Pensemos por um momento que a famosa “nada se perde, nada se cria, tudo se transforma” não correspondesse à realidade. Vamos pensar em nós, nas nossas vidas, nas nossas experiências, nos nossos sonhos. Vamos gastar algumas sinapses cerebrais a imaginar o que seria se simplesmente nos recusássemos a aceitar ser meros espectadores de um processo contínuo e infindável de transformação. É verdade que todos os átomos que constituem as moléculas que formam o nosso corpo não se esgotarão com a nossa morte. Eles existem à tempos infindáveis e sobreviver-nos-ão. Eles são produto de combustões estelares e fazem de nós, em última análise, produtos de estrelas ha muito desaparecidas na imensidão do tempo cósmico.


Gosto no entanto de acreditar que somos mais do que o ajuntamento das entidades físicas que forma o nosso corpo. Nesse sentido, olhando para a nossa, ou pelo menos para a minha, vida consigo ver um ganho constante e sucessivo, algumas transformações, mas nenhuma perda. Olhando para trás com os meus olhos sempre mais implacáveis para mim do que para os outros, tenho muita dificuldade em identificar situações de perda. Continuo com uma espécie de arrogância juvenil que entende todas as experiências vividas como um ganho.


É verdade que já não tenho próximos amigos que me são queridos, é verdade que já não tenho vivas pessoas que me foram, e continuam a ser, fundamentais, é, dolorosamente verdade, que amores sentidos não passaram de promessas lindas de poemas numa vida cada vez mais escrita em prosa. Mas e depois ? Será que isso foi uma perda. Como posso ter perdido algo ou alguém que carrego na memória à distância de um pensamento ? Como poderá ter desaparecido alguém a quem recorro nos mais solitários momentos de introspecção ?


O mesmo se passa com os sonhos. Continuo a criar sonhos à medida das situações e das pessoas com quem me cruzo. Insisto em ver a cada faceta da vida o que pode vir a ser e não me consigo satisfazer com ver o, muito mais seguro, que é. Olhar para a realidade actual é esquecer que o tempo presente é convencionado ser de três segundos. Pensar no presente é abdicar de imaginar o que será o próximo parágrafo que escreverei daqui a três minutos.Eu sei que sou um optimista inveterado. Mas sei por que o sou, e isso é que para mim é importante.


Lavoisier mudou a Química, e de uma certa forma o mundo. Lavoisier associou a degradação dos metais à presença de oxigénio, e, em última análise, a lâmina que o matou enferrujou na presença do oxigénio que ele baptizou muito mais depressa do que as suas ideias foram esquecidas. Lavoisier caiu como mártir no altar sagrado da alarvidade mas não será jamais esquecido.


Eu, contudo, em mais um ataque de convencimento postulo que a lei da conservação da massa não se aplica à minha vida. Comigo, nada se perde, tudo se cria e, em caso de necessidade, algo se transforma.


E transformar-me-ei.


Obrigado Lavoisier.
 

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