Há poucas coisas de que goste tanto na escola como de ver os miúdos nas aulas de Educação Física.
Com todas as alterações que houve no ensino nos últimos anos, quer se queira quer não, foi criada uma barreira que apesar de fictícia, existe. Há as disciplinas prioritárias, aquelas que são sujeitas a avaliação externa, como a Matemática e a Língua Portuguesa, as outras teóricas e finalmente as chamadas “expressões” que quase só existem para passar o tempo.
Compreendo a preocupação com as duas disciplinas consideradas como fundamentais para tudo mas nunca aceitarei o menosprezo com que as “expressões” têm tendência a ser tratadas. Acredito sinceramente que a formação plena de qualquer aluno passa por todas as vertentes e se acham que me estou a armar em “homem renascentista” devo dizer-vos que esta minha opinião é resultado do que tenho visto em todas as escolas onde trabalhei nos 11 anos de ensino que tenho.
Voltando ao início, é no desporto que sinto os miúdos mais livres. É como se por um passo de mágica, a entrada em campo formatasse toda a realidade em que vivem. Já vi alunos que ninguém dá nada por eles agigantarem-se ao entrar num campo. Já os vi olhar a bola com um olhar de paixão e desejo que não vejo em muitos adultos.
Um professor meu de Educação Física ensinou-me há muitos anos atrás que o desporto é a forma mais civilizada que um ser humano tem de provar a outro que é melhor do que ele, daí o esforço hercúleo que acho que todos devemos ter em ensinar que há limites que não se ultrapassam na competição desportiva.
Aqui em Aljezur, que é onde tenho o previlégio de ensinar há alguns anos, vejo continuamente, dia após dia, fenómenos de heroísmo realmente comoventes. Há um miúdo com uma vida de inferno em cima dos ombros que num campo de futebol flutua acima de tudo e voa mais alto que os seus próprios sonhos. Há outro que nunca conheceu o conceito de familia, que ninguém o quer por perto na realização de trabalhos escolares mas, durante um jogo que corre mal, todos chamam por ele porque é em quem mais confiam. Vi uma miúda acelerar os patins para além do expoente do racional sem se preocupar se conseguiria travar antes da próxima curva para ganhar uns centésimos de segundo na luta pela vitória.
Todos eles se transfiguram quando são colocados perante o desafio de serem os melhores ou os primeiros dos últimos. Vivem a jogada com a entrega do destino, vencem as dificuldades com o desespero dos condenados e entregam em cada lance tudo o que são. Fintam as tristezas, passam a felicidade, rematam como se a sua vida dependesse disso e atacam o cesto saltando mais alto do que qualquer barreira que se lhes levante.
Muitos não têm um lar em que se revejam, outros querem arrancar de quem os vê o carinho, amor e ternura que nunca conheceram até aquela jogada genial por todos aplaudida, muitos outros estão no campo como gostariam de estar na vida, seguros, decididos e apoiados.
Adorava poder ensiná-los a transportar para a vida os princípios que aplicam naturalmente no desporto. Tento, e tento e continuo a tentar mas é através do desporto que sonham no intervalo do pesadelo que são as suas vidas. O campo é o seu horizonte, a bola é a sua amante e a vitória o seu lema.
Podemos medir a sua maturidade pela forma como se dedicam aos estudos, às notas e à preocupação com que planeiam o seu futuro, mas, o seu carácter é no campo que se revela. Na forma como enganam o destino com uma finta, na forma como se jogam a uma bola para que aqueles que neles depositaram confiança não sofram um golo, na concentração que aplicam no arco para que a sua seta atinja um sonho.
A vida pode tê-los condenado a um inferno ainda antes de terem nascido, a familia pode não ter existido, aqueles que tinham a obrigação de os proteger podem ter sido os que lhes fizeram mal, mas, dentro do campo, só eles mandam em si próprios. No campo eles afirmam-se e afirmam o seu grito de raiva contra as adversidades. O campo é o seu universo e eles governam-no como Heróis, como Deuses, como Titãns.
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