Paranóias sem sentido

Acho que foi uma apoteose que ocorreu antes do começo do início. Há quem diga que aí nasceu deus. Há até quem diga que foi deus que lançou os dados que a tudo deram origem.

Sei que depois desse momento inicial e iniciador de tudo, apareceu o tempo. Foi muito antes de nós, muito antes da nossa capacidade e necessidade de o medir, compartimentar e quantificar, já o tempo existia.

Um dia aparecemos. Aparecemos como fruto de uma evolução perdida nas brumas do tempo e não tardou a que descobríssemos que precisávamos de o controlar para não o temer. Criámos os relógios. Instrumentos que usam o tempo para produzir mais tempo, e mais tempo, e mais tempo. E descobrimos que no fim do tempo, o Amor resiste à morte.

Julgámos obter segurança crendo na existência de um relojoeiro supremo, o dono do tempo, o artesão do infinito. Acreditámos que a sua existência traria o equilíbrio necessário a quem vive preso entre o tempo que passa e o tempo que vem. Desejámos sacudir dos nossos ombros curvados a responsabilidade de viver plenamente, porque não podia haver vida plena não controlando o tempo em que ela se desenrola. E o relojoeiro supremo continuaria a olhar pelo tempo. E os nossos relógios continuariam a usar o tempo para produzir mais tempo, e mais tempo, e mais tempo. E o Amor continuaria a ultrapassar a morte.

Depois descobrimos ainda que podíamos dividir o tempo em passado, presente e futuro. Aí sujeitámo-nos à ditadura da nossa criação e tornámo-nos escravos, não de um tempo, mas dos três. Aí bebemos o fel da perda de um tempo que se esvaiu por entre os dedos e no passado ficou. Aí entendemos a efemeridade do tempo que está a passar. Aí decidimos esperar com ansiedade o tempo que há de vir adiando para um futuro próximo ou distante o que não fazemos hoje, por nós e/ou pelos outros. E os relógios continuam a usar o tempo para produzir mais tempo, e mais tempo, e mais tempo. E o Amor continua a ser mais forte do que a morte.

Sentado numa cama de um hospital sou fulminantemente assaltado pelo percurso que me trouxe até aqui. Com dois comprimidos de sabor horrível a dissolverem-se debaixo da língua e uma porcaria qualquer espetada numa veia olho para um espelho distante revelado por uma cortina que se abriu e não me reconheço. Já não sou quem fui e acho que nunca me tornei no que esperei vir a ser. Julgo não passar de uma contradição cronológica entre tempos perdidos, mas ainda assim, sou eu, em toda a humildade das minhas virtudes e em toda a imponência dos meus defeitos.

Olho para trás e vejo o quê ? Os campos relvados do Alto da Barra estão a arder. A terna placidez da Ria Formosa está a arder. O campus de Gualtar está a arder. A estação da CP da Sra da Hora está a arder. Lagos está a arder. As falésias de Aljezur estão a arder. Por entre o fumo e o fogo, uma nuvem de cinzas envolve-me. Cada uma é um pedaço de memória vivida mas não esquecida. Sorrio com a compreensão póstuma de que essas memórias são apenas quem eu fui, já não são quem eu sou.

Está a chegar a hora. Está próximo o momento de inverter o rumo, de mudar de caminho. É chegado o momento de romper com o paradigma electroquímico segundo o qual cargas eléctricas diferentes se atraem e cargas iguais se repelem. Chegou o tempo de compreender que por muito que dois protões se tentem afastar, quando juntos no núcleo, a força necessária para os separar é infinitamente superior.

Hoje regresso ao futuro. Talvez ainda não regresse hoje, mas pelo menos sei que hoje deixo de me afastar dele. Quando sair daqui, desta cama, deste hospital, desta cidade que nada me diz e à qual me condenei a trabalhar, vou procurar os “meus”. Os que estiverem presentes ficam, os que estiverem ausentes vão, os diletantes, que continuem a diletar nos seus destinos.

O amanhã vai chegar diferente. Sei-o, como sei que os relógios continuarão a usar tempo para produzir mais tempo, e mais tempo, e mais tempo. Só que desta vez também sei que não estou condenado ao eterno e etéreo destino de chegar tarde demais para os deuses e cedo demais para os homens. E continuo a saber que o Amor sobreviverá à morte.

(Faro, 7 para 8 de Fevereiro, entre as 3h00 e as 4h15)

4 comentários:

Ok... A arder? Vi o The Plan ontem, por isso a referência não me passou despercebida :) um destes dias temos que deixar a galactica para trás...

22/2/10 13:39  

Nunca. Lizzie eu avisei-te que esse texto tinha sido escrito sob influência de 4 comprimidos e uma injecção. Sentia-me como se tivesse fumado metade dos cogumelos do hemisfério norte. Além disso, o The Plan não me saía da cabeça.
:P

22/2/10 14:38  

Caramba Nicolae á muito tempo que não lia uma coisa assim. Estás mais enigmático do que o costume, mas mesmo assim brilhante. Obrigado por este bocadinho.

22/2/10 18:00  

Enigmático ? O texto acabou por ter mais lógica do que a pretendida no início. Leste o título certo ?

23/2/10 08:59  

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