Terminou o campeonato do mundo de futebol. Como é típico, agora vem a altura de fazer todos os balanços sobre o que aconteceu. Quem surpreendeu pela positiva, quem se afundou abaixo das expectativas. Está na hora de escolher os heróis e os vilões do certame desportivo. Eu, pela minha parte, desta vez não escolherei um “herói” do mundial. Neste ano, já escolhi o meu “anti-herói”, Andrés Iniesta.
Muitos poderão referir a minha esperteza saloia por escolher precisamente o homem que marcou o golo da vitória Espanhola na final. Azarito. Fiquem lá com os vossos rebuçados que a minha dieta desaconselha-os fortemente. Escolho Iniesta por muito mais do que o golo que marcou.
Iniesta foge à velocidade da luz do arquétipo do jogador de futebol moderno. Ele é tímido e reservado, calado e nada espampanante. Ele cumpre o seu papel, que é jogar futebol, e fá-lo melhor do que a maioria, e, ainda por cima, tem a coragem rara de não se gabar disso em público. Andrés é humilde, tão humilde como só os bravos conseguem ser. Não passeia tatuagens pelos relvados, não usa os incontornáveis brincos, não tem vergonha da sua careca e não consta que pense fazer implantes capilares para melhorar a sua imagem, como muitas dessas mariposas metrossexuais que por aí andam fariam. Não se conhece uma campanha publicitária daquelas a que os futebolistas tanto se dedicam, seja a uma marca de combustíveis para foguetões ou a um molho qualquer para temperar uma salada de beringelas.
Iniesta faz o que gosta de fazer. Joga, cria jogo, marca e é feliz assim, porque tudo o resto são cantigas, e ele não se reconhece nas letras ou músicas. É impensável vê-lo chegar a um estádio de helicóptero, é impossível imaginá-lo a comprar um filho para aparecer nas capas dos jornais.
A nossa sociedade continua a privilegiar comportamentos paleolíticos. Não interessa muito quem realmente somos, interessa muito mais a imagem de nós que passamos. Se um homem se mostra confiante e decidido, mesmo que não o seja, tem abertas todas as portas e é por todos admirado. Se um homem se mostra humilde e recatado, por muito corajoso ou confiante que seja, vende a imagem de alguém fraco e medroso. Essas imagens valem muito mais do que a realidade, e nem sequer se dão ao trabalho de descortinar quando a imagem é uma máscara para traumas e fraquezas, ou quando a timidez é apenas um véu que protege toda a força interior que está escondida. Triste humanidade esta que depois de partir o átomo e descodificar o gene ainda se rege por regras sociais dos tempos em que resolvíamos os nossos problemas à mocada dentro de uma gruta.
Iniesta é o anti-herói porque escarna olimpicamente sobre os que se prendem a estes conceitos da ditadura da imagem. Fá-lo, não só por ser bom, melhor do que a maioria dos outros, mas por saber que será reconhecido mesmo sem se tornar num emplastro para a comunicação social e as revistas cor-de-rosa. Por tudo isso, Andrés Iniesta merece o seu momento de honra no cimo do pedestal. É claro que não o quer, nós os tímidos, nunca o queremos. Mas que merece, merece !
A semana passada recebi pela primeira vez estranhos em casa. Tive algumas opiniões favoráveis ao meu ingresso no couchsurfing, outras desfavoráveis que não se cansaram de me repetir os riscos. Como de costume, decidi e segui em frente, o meu apartamento vai servir este verão de santuário para pessoal de quer passar férias de forma barata.
Terça feira passada chegaram os pioneiros. Ele é o Tim. Americano de 25 anos com 2,05 metros. Estuda engenharia bio-médica na Holanda. É de S Diego, na Califórnia, uma das cidades mais bonitas dos Estados Unidos, país de onde saiu aos 19 anos para ir trabalhar para a Austrália. Temos algumas coisas em comum, pelo menos no que às férias diz respeito. Gosta de partir à descoberta sem planos nem roteiros, gosta de ser atropelado pelo inesperado, de errar sem destino e de reagir a estímulos, mais do que os prever. Contou-me que um dia se lembrou de ir de onde estava para Sidney. Olhou para o mapa mas não para a escala, fez-se à estrada e ficou sem gasóleo a uns 350 km do destino. Passadas 12 horas parado no carro no meio do deserto, foi socorrido por um carro que passou com 4 jovens, incluindo a futura namorada, que seria por evolução favorável do destino, futura esposa. Pediu-a em casamento 7 meses depois quando, segundo as suas palavras, percebeu que ouvir a sua voz todas as manhãs seria suficiente para ser feliz, ainda que lhe faltasse tudo o resto. Adora futebol e inveja a capacidade que nós europeus temos de encontrar no desporto um factor de unidade nacional, coisa que não acontece nos Estados Unidos onde as competições são entre clubes e universidades e nada mais. Adora política mas está descrente sobre a capacidade dos Americanos corrigirem o que há de errado no país. É louco pela Europa e quer conhecê-la toda devido às muitas convulsões e complicações que são estranhas à simplicidade do sistema Americano.
Ela, bem, ela é a Asli. Turca da zona de Ancara descendente de Tártaros que viveram alguns séculos na Crimeia. É baixinha, de cabelos que ainda não decidiram se são castanhos claros ou louros, e com uns olhos verdes, verdes inundados em clorofila, daqueles olhos onde um homem se perde mesmo ainda antes de pensar em perder-se. Ela estuda também na Holanda uma coisa chamada Design Industrial e no seu tempo livre é voluntária numa associação de apoio a doentes com Alzheimer. Adora música, especialmente música étnica e Jazz, pinta de vez em quando e é dançarina de dança do ventre. Não liga muito à religião mas é muçulmana. Segundo ela seria uma traição não respeitar a religião graças à qual tantos dos seus antepassados foram perseguidos por governos czaristas e comunas. O sonho dela é conhecer o mundo. Visitar sítios diferentes, contactar com culturas distintas, conversar com estranhos. É uma profunda idealista que acredita que só criando uma rede que rompa com as fronteiras a que ainda nos agarramos é que podemos ter consciência que cada ser humano é uma obra prima da criação, natural ou divina, e que só quando nos olharmos como tal deixaremos de nos matar uns aos outros por motivos estúpidos. Uma noite, a olhar para as borras do pior café que bebi este milénio, disse-me ser uma tradição Tártara ler a sina nas ditas borras do café. Foi a deixa perfeita para uma das minhas típicas piadas que saiu sob a forma de “I saw it in Harry Potter”, ao que ela respondeu com um brutal “Hey jackass, do I look like Trelawney to you ?”. Finda a troca de galhardetes, lá virou a chávena ao contrário e a leitura que fez deixou-me literalmente de queixos no chão, sim, ainda mais do que a cor dos seus olhos.
Estiveram cá três dias. Foram às ilhas, conheceram a baixa de Olhão, apaixonaram-se pelos gelados da Gelvi que disseram ser os melhores que já comeram. Ficaram extasiados por podermos comer uma posta gigante de espadarte por 12 euros e, na última noite fizeram uma birra monumental porque queriam comer carne, problema prontamente resolvido com uma ida a um rodízio. Depois de uma refeição com todos os requintes de alarvidade, em que a Asli devorou com uma sofreguidão que merecia prémio Nobel todos os pedaços de ananás grelhado que conseguiu (nunca tinha provado tal coisa), fomos ao Cantaloupe onde, ao som de Jazz, tivemos mais uma amena cavaqueira. Numa dada altura perguntei-lhes se tinham algum desejo especial para a última noite. O Tim, vergado a 6 ou 7 cervejas e a 1/3 de uma aguardente de medronho soltou um simples “I just want to be near the sea”, enquanto que a Asli, amaciada por 2 caipirinhas e outro 1/3 de aguardente de medronho saiu-se com um poético “I want something different, something magic”. Eu pelo meu lado, desperto por duas taças de vinho tinto e pelo 1/3 restante da aguardente, lembrei-me de citar o Harry no 6º filme da sua saga e proferi um confiante e decidido “then by all means, come along”.
Alugámos um barco onde entrámos, o Tim com um sorriso de delinquência infantil, a Asli com uma apreensão que oscilava entre o receio e a excitação. Um minuto depois vogávamos pela Ria Formosa à velocidade da aventura e só parámos na ilha da Armona. Eram 0h45. O motorista colou-se a nós, como era por demais previsível. Fomos a um bar que fica junto à praia e enquanto o Tim com um estoicismo admirável aturou o nosso motorista a explicar como perdeu uma carreira futebolística excelente para vir para Portugal ter com a mãe, eu e a Asli juntámo-nos a um grupo que, ao som de viola, ia cantando tudo o que havia para cantar. Depois das cantorias ainda houve tempo para um passeio pela praia, para molhar os pés, e, para numa ofensiva tão bem consertada que faria inveja a qualquer regimento de operações especiais, encharcar o motorista, o que foi bastante arriscado dado que ele tinha as chaves do barco. Antes de tudo terminar, a Asli ainda me chamou à parte e durante meia hora soltou toda a sua perspicácia e terminou a conversa da leitura da sina da noite anterior, conversa essa que corre o risco de se tornar numa das mais emblemáticas e importantes dos últimos tempos.
Voltámos para Olhão já as 4h00 tinham passado. O Tim mais adormecido que acordado, a Asli mais confiante no barco, mas ainda assim a cravar-me as unhas no ombro cada vez que havia uma guinada ou rasgávamos alguma onda.
No dia seguinte foram embora. Deixaram atrás um rasto de risos e gargalhadas, conversas e bons momentos. Só me pediram que lhes arranjasse dormida por três dias, em troca ofereceram-me muito mais do que isso. O “meu” Americano de 2,05m lá foi com a Europa dentro da cabeça. A “minha” Turco-Tártara, essa continuará com o Mundo entre os seus olhos verdes hipnotizantes.
Como balanço, fica a certeza que fiz dois amigos, e, como canta o Sérgio Godinho, “coisa mais preciosa no mundo não há”.
Os dias 1, 2 e 3 de Julho marcaram mais um aniversário da batalha de Gettysburg. Não vou maçar-vos obviamente com o relato de todos os acontecimentos e escaramuças que fizeram dessa batalha o “turning point” da guerra civil americana, nem sequer vou entrar pelos campos da análise histórica para explicar a razão dessa guerra ter sido, na minha opinião, um dos momentos que mudaram o mundo e abriram caminhos que até então existiam apenas na penumbra. Vou apenas concentrar-me no último dia da batalha. Vou apenas ocupar-me de uma carga de infantaria que marcou a fogo a memória e elevou o nome dos derrotados acima da glória dos vencedores.
No dia 1 de Julho o exército confederado (sulistas) caminhava descontraidamente e completamente desmobilizado pelos campos da Pennsylvania (estado onde se situa Gettysburg) seguros de que não tinham oposição. A cavalaria do consagrado Genaral JEB Stuart tinha cometido um erro infantil e, em vez de estar de olho em cima do exército unionista (nortistas) andava divertida a saquear pequenas vilas na outra ponta do estado. A consequência foi que na manhã de 1/7/1863 os destacamentos avançados confederados viram-se apanhados pela cavalaria unionista completamente de surpresa. Robert E Lee, o General sulista, evitou o mais que pode entrar num confronto generalizado, quanto mais não seja porque não sabia que forças estava a enfrentar. A enorme resistência dada pela cavalaria de Buford obrigou-o a rasgar os seus planos originais e a adaptar-se à nova circunstância. A meio da tarde ordenou a todas as forças confederadas presentes que se lançassem no campo de batalha e, a metade do exército unionista já presente foi quase chacinada. Ao cair da noite, Gettysburg estava ocupada e o exército unionista, a receber reforços a cada minuto, estava entrincheirado nas escarpas e montes a sul da cidade.
No dia 2 de Julho, Lee ordenou constantes e sucessivos ataques contra os nortistas mas nenhum deles deu resultado. O exército do norte estava num terreno elevado, com fortes posições defensivas e naqueles tempos as tácticas de guerra associadas ao armamento beneficiavam claramente os defensores.
Eis então que chegamos ao dia 3 de Julho. As linhas unionistas mantêm-se seguras, o exército confederado, depois de atacar ambos os flancos foi repelido. Apesar de muito discutida e muito polémica, Lee decide por um ataque frontal ao centro das linhas do exército da União. O plano de batalha era simples. Três Divisões inteiras, constituídas por nove Brigadas e perfazendo um total de 13.000 homens avançariam em linha recta não parando por nada, nem sequer para responder ao fogo inimigo. Após terminarem esta caminha de dois quilómetros em passo rápido, atacariam as linhas defensivas que se encontravam protegidas por um muro de pedra na extensão de toda a frente. O avanço seria precedido por uma barragem de artilharia com o objectivo de neutralizar os canhões dos nortistas. Teoricamente era bonito, apesar de arriscado. Na prática, foi um desastre. Nenhuma carga de infantaria tinha início sem a típica barragem de artilharia, logo, os unionistas aos primeiros tiros de canhão adivinharam o que aí vinha e retiraram grande parte da sua própria artilharia para fora do alcance dos canhões confederados. Além disso, mobilizaram reforços de outras partes da frente, e podiam fazê-lo em segurança porque a sua frente era muito mais compacta do que a frente sulista. Basicamente as descargas dos confederados acertaram em nada e quando os seus 13.000 soldados saíram dos bosques e iniciaram a caminhada, os unionistas trouxeram de volta os canhões e abriram fogo com tudo o que tinham. A partir dos 1.200 metros de distância os sulistas ficaram ao alcance dos canhões de grande alcance que foram abrindo pontualmente buracos na suas linhas. A cada tiro certeiro os soldados das Brigadas de suporte que vinham atrás ocupavam o lugar dos seus camaradas caídos e com o avanço progressivo as linhas foram encolhendo facilitando a vida aos artilheiros da União que tinham que se preocupar com linhas inimigas cada vez mais curtas e cada vez mais próximas. A cerca de 800 metros do objectivo final, os confederados tiveram que ultrapassar uma cerca em madeira e voltar a formar do outro lado da mesma, o que foi um processo lento e que causou bastantes baixas. As duas Brigadas do General Anderson que deviam estabilizar a frente sul do avanço não conseguiram passar desta cerca, tal foi o elevado número de baixas. Na frente norte, duas Brigadas unionistas abandonaram a linha defensiva e num movimento de flanqueamento sujeitaram toda a metade norte da linha avançada confederada um fogo vindo de duas direcções, o que exponenciou as baixas e fez com que a maioria das Brigadas das Divisões de Pettigrew e Trimble desistissem da carga antes do seu final.
Aos 300 metros de distância tudo piorou. Desta vez os soldados sulistas ficaram sob fogo das munições de curto alcance. Eram chamadas as “grape shots” porque explodiam à saída do canhão e funcionavam como caçadeiras gigantes que abatiam homens à dezena e abriam buracos nas linhas que já não podiam ser preenchidos de novo. Cada vez existiam menos soldados a avançar mas isso não os parou. A 100 metros de distância ficaram ainda ao alcance dos disparos de espingarda. Os soldados do norte tinham linhas com uma profundidade de quatro homens, em que o da frente disparava e os restantes recarregavam as armas.
Nesta altura, já só a Divisão de Pickett se encontrava em combate. As suas três Brigadas eram lideradas por James Kemper, que já tinha caído com uma ferida grave, por Richard Garrett, que ferido numa perna na batalha anterior fez a carga a cavalo ignorando os avisos para não o fazer visto tornar-se num alvo bem identificável. Garrett foi visto até cerca de 200 metros do alvo tendo sido “pulverizado” por um tiro certeiro de “grape shot”. Finalmente havia Lew Armistead que era o oficial de maior patente ainda em combate. Os restos desta três Brigadas sob liderança de Armistead ainda conseguiram furar as linhas defensivas unionistas mas estavam demasiado diminuídas para conseguir suster a frente. O contra ataque do norte foi implacável e perante um General Armistead mortalmente ferido, os soldados sobreviventes renderam-se ou foram mortos.
A carga de Pickett foi um desastre total para os confederados que perderam mais de 50% dos 13.000 homens envolvidos. Para explicitar bem a situação, na divisão de Pickett os três Generais que lideravam as Brigadas foram mortos, bem como os treze Coronéis que lideravam os respectivos regimentos. Numa daquelas ironias fazem a história, o General defensor do lado do norte era Hancock, o melhor amigo de Armistead antes da guerra, que também foi gravemente ferido durante a batalha. Quando os soldados unionistas assistiram um Armistead moribundo, ele pediu-lhes que o seu corpo fosse entregue a Hancock. Ao saber pelos soldados que Hancock também lutava pela vida, as suas últimas palavras foram: “No, not both of us, not all of us”.
Independentemente da minha posição sobre a guerra civil americana, independentemente de achar que o resultado foi o único possível para a Humanidade, mais do que para os Estados Unidos, não consigo deixar de admirar os homens que participaram nesta ridícula carnificina. Não consigo deixar de sentir um leve brilho nos olhos ao imaginar a cena de 13.000 homens avançarem num campo aberto aos gritos de “Virginia, Virginia”.
E avançaram mesmo.
Em direcção à morte e ao sofrimento.
Em direcção à derrota e à eternidade.
Nada como chegar ao local do costume para uma bifana e uma cerveja, e descobrir que, na noite mais movimentada da semana, há falta de pessoal. Como mãos a abanar nunca ajudaram ninguém, vai de tirar cafés, servir cervejas, recolher e limpar mesas, lavar loiça entre a 1h e as 6h da manhã. A minha parte preferida foi no entanto varrer e lavar o chão entre as 6h e as 7h. Talvez esteja a levar a minha (re)conhecida polivalência longe demais.
Bem, pelo menos deu para ver o nascer do sol sobre a Ria Formosa. E espectáculo mais bonito não há.
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