Os dias 1, 2 e 3 de Julho marcaram mais um aniversário da batalha de Gettysburg. Não vou maçar-vos obviamente com o relato de todos os acontecimentos e escaramuças que fizeram dessa batalha o “turning point” da guerra civil americana, nem sequer vou entrar pelos campos da análise histórica para explicar a razão dessa guerra ter sido, na minha opinião, um dos momentos que mudaram o mundo e abriram caminhos que até então existiam apenas na penumbra. Vou apenas concentrar-me no último dia da batalha. Vou apenas ocupar-me de uma carga de infantaria que marcou a fogo a memória e elevou o nome dos derrotados acima da glória dos vencedores.
No dia 1 de Julho o exército confederado (sulistas) caminhava descontraidamente e completamente desmobilizado pelos campos da Pennsylvania (estado onde se situa Gettysburg) seguros de que não tinham oposição. A cavalaria do consagrado Genaral JEB Stuart tinha cometido um erro infantil e, em vez de estar de olho em cima do exército unionista (nortistas) andava divertida a saquear pequenas vilas na outra ponta do estado. A consequência foi que na manhã de 1/7/1863 os destacamentos avançados confederados viram-se apanhados pela cavalaria unionista completamente de surpresa. Robert E Lee, o General sulista, evitou o mais que pode entrar num confronto generalizado, quanto mais não seja porque não sabia que forças estava a enfrentar. A enorme resistência dada pela cavalaria de Buford obrigou-o a rasgar os seus planos originais e a adaptar-se à nova circunstância. A meio da tarde ordenou a todas as forças confederadas presentes que se lançassem no campo de batalha e, a metade do exército unionista já presente foi quase chacinada. Ao cair da noite, Gettysburg estava ocupada e o exército unionista, a receber reforços a cada minuto, estava entrincheirado nas escarpas e montes a sul da cidade.
No dia 2 de Julho, Lee ordenou constantes e sucessivos ataques contra os nortistas mas nenhum deles deu resultado. O exército do norte estava num terreno elevado, com fortes posições defensivas e naqueles tempos as tácticas de guerra associadas ao armamento beneficiavam claramente os defensores.
Eis então que chegamos ao dia 3 de Julho. As linhas unionistas mantêm-se seguras, o exército confederado, depois de atacar ambos os flancos foi repelido. Apesar de muito discutida e muito polémica, Lee decide por um ataque frontal ao centro das linhas do exército da União. O plano de batalha era simples. Três Divisões inteiras, constituídas por nove Brigadas e perfazendo um total de 13.000 homens avançariam em linha recta não parando por nada, nem sequer para responder ao fogo inimigo. Após terminarem esta caminha de dois quilómetros em passo rápido, atacariam as linhas defensivas que se encontravam protegidas por um muro de pedra na extensão de toda a frente. O avanço seria precedido por uma barragem de artilharia com o objectivo de neutralizar os canhões dos nortistas. Teoricamente era bonito, apesar de arriscado. Na prática, foi um desastre. Nenhuma carga de infantaria tinha início sem a típica barragem de artilharia, logo, os unionistas aos primeiros tiros de canhão adivinharam o que aí vinha e retiraram grande parte da sua própria artilharia para fora do alcance dos canhões confederados. Além disso, mobilizaram reforços de outras partes da frente, e podiam fazê-lo em segurança porque a sua frente era muito mais compacta do que a frente sulista. Basicamente as descargas dos confederados acertaram em nada e quando os seus 13.000 soldados saíram dos bosques e iniciaram a caminhada, os unionistas trouxeram de volta os canhões e abriram fogo com tudo o que tinham. A partir dos 1.200 metros de distância os sulistas ficaram ao alcance dos canhões de grande alcance que foram abrindo pontualmente buracos na suas linhas. A cada tiro certeiro os soldados das Brigadas de suporte que vinham atrás ocupavam o lugar dos seus camaradas caídos e com o avanço progressivo as linhas foram encolhendo facilitando a vida aos artilheiros da União que tinham que se preocupar com linhas inimigas cada vez mais curtas e cada vez mais próximas. A cerca de 800 metros do objectivo final, os confederados tiveram que ultrapassar uma cerca em madeira e voltar a formar do outro lado da mesma, o que foi um processo lento e que causou bastantes baixas. As duas Brigadas do General Anderson que deviam estabilizar a frente sul do avanço não conseguiram passar desta cerca, tal foi o elevado número de baixas. Na frente norte, duas Brigadas unionistas abandonaram a linha defensiva e num movimento de flanqueamento sujeitaram toda a metade norte da linha avançada confederada um fogo vindo de duas direcções, o que exponenciou as baixas e fez com que a maioria das Brigadas das Divisões de Pettigrew e Trimble desistissem da carga antes do seu final.
Aos 300 metros de distância tudo piorou. Desta vez os soldados sulistas ficaram sob fogo das munições de curto alcance. Eram chamadas as “grape shots” porque explodiam à saída do canhão e funcionavam como caçadeiras gigantes que abatiam homens à dezena e abriam buracos nas linhas que já não podiam ser preenchidos de novo. Cada vez existiam menos soldados a avançar mas isso não os parou. A 100 metros de distância ficaram ainda ao alcance dos disparos de espingarda. Os soldados do norte tinham linhas com uma profundidade de quatro homens, em que o da frente disparava e os restantes recarregavam as armas.
Nesta altura, já só a Divisão de Pickett se encontrava em combate. As suas três Brigadas eram lideradas por James Kemper, que já tinha caído com uma ferida grave, por Richard Garrett, que ferido numa perna na batalha anterior fez a carga a cavalo ignorando os avisos para não o fazer visto tornar-se num alvo bem identificável. Garrett foi visto até cerca de 200 metros do alvo tendo sido “pulverizado” por um tiro certeiro de “grape shot”. Finalmente havia Lew Armistead que era o oficial de maior patente ainda em combate. Os restos desta três Brigadas sob liderança de Armistead ainda conseguiram furar as linhas defensivas unionistas mas estavam demasiado diminuídas para conseguir suster a frente. O contra ataque do norte foi implacável e perante um General Armistead mortalmente ferido, os soldados sobreviventes renderam-se ou foram mortos.
A carga de Pickett foi um desastre total para os confederados que perderam mais de 50% dos 13.000 homens envolvidos. Para explicitar bem a situação, na divisão de Pickett os três Generais que lideravam as Brigadas foram mortos, bem como os treze Coronéis que lideravam os respectivos regimentos. Numa daquelas ironias fazem a história, o General defensor do lado do norte era Hancock, o melhor amigo de Armistead antes da guerra, que também foi gravemente ferido durante a batalha. Quando os soldados unionistas assistiram um Armistead moribundo, ele pediu-lhes que o seu corpo fosse entregue a Hancock. Ao saber pelos soldados que Hancock também lutava pela vida, as suas últimas palavras foram: “No, not both of us, not all of us”.
Independentemente da minha posição sobre a guerra civil americana, independentemente de achar que o resultado foi o único possível para a Humanidade, mais do que para os Estados Unidos, não consigo deixar de admirar os homens que participaram nesta ridícula carnificina. Não consigo deixar de sentir um leve brilho nos olhos ao imaginar a cena de 13.000 homens avançarem num campo aberto aos gritos de “Virginia, Virginia”.
E avançaram mesmo.
Em direcção à morte e ao sofrimento.
Em direcção à derrota e à eternidade.
Mensagem mais recente Mensagem antiga Página inicial
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
0 comentários:
Enviar um comentário