Estranhos

A semana passada recebi pela primeira vez estranhos em casa. Tive algumas opiniões favoráveis ao meu ingresso no couchsurfing, outras desfavoráveis que não se cansaram de me repetir os riscos. Como de costume, decidi e segui em frente, o meu apartamento vai servir este verão de santuário para pessoal de quer passar férias de forma barata.

Terça feira passada chegaram os pioneiros. Ele é o Tim. Americano de 25 anos com 2,05 metros. Estuda engenharia bio-médica na Holanda. É de S Diego, na Califórnia, uma das cidades mais bonitas dos Estados Unidos, país de onde saiu aos 19 anos para ir trabalhar para a Austrália. Temos algumas coisas em comum, pelo menos no que às férias diz respeito. Gosta de partir à descoberta sem planos nem roteiros, gosta de ser atropelado pelo inesperado, de errar sem destino e de reagir a estímulos, mais do que os prever. Contou-me que um dia se lembrou de ir de onde estava para Sidney. Olhou para o mapa mas não para a escala, fez-se à estrada e ficou sem gasóleo a uns 350 km do destino. Passadas 12 horas parado no carro no meio do deserto, foi socorrido por um carro que passou com 4 jovens, incluindo a futura namorada, que seria por evolução favorável do destino, futura esposa. Pediu-a em casamento 7 meses depois quando, segundo as suas palavras, percebeu que ouvir a sua voz todas as manhãs seria suficiente para ser feliz, ainda que lhe faltasse tudo o resto. Adora futebol e inveja a capacidade que nós europeus temos de encontrar no desporto um factor de unidade nacional, coisa que não acontece nos Estados Unidos onde as competições são entre clubes e universidades e nada mais. Adora política mas está descrente sobre a capacidade dos Americanos corrigirem o que há de errado no país. É louco pela Europa e quer conhecê-la toda devido às muitas convulsões e complicações que são estranhas à simplicidade do sistema Americano.

Ela, bem, ela é a Asli. Turca da zona de Ancara descendente de Tártaros que viveram alguns séculos na Crimeia. É baixinha, de cabelos que ainda não decidiram se são castanhos claros ou louros, e com uns olhos verdes, verdes inundados em clorofila, daqueles olhos onde um homem se perde mesmo ainda antes de pensar em perder-se. Ela estuda também na Holanda uma coisa chamada Design Industrial e no seu tempo livre é voluntária numa associação de apoio a doentes com Alzheimer. Adora música, especialmente música étnica e Jazz, pinta de vez em quando e é dançarina de dança do ventre. Não liga muito à religião mas é muçulmana. Segundo ela seria uma traição não respeitar a religião graças à qual tantos dos seus antepassados foram perseguidos por governos czaristas e comunas. O sonho dela é conhecer o mundo. Visitar sítios diferentes, contactar com culturas distintas, conversar com estranhos. É uma profunda idealista que acredita que só criando uma rede que rompa com as fronteiras a que ainda nos agarramos é que podemos ter consciência que cada ser humano é uma obra prima da criação, natural ou divina, e que só quando nos olharmos como tal deixaremos de nos matar uns aos outros por motivos estúpidos. Uma noite, a olhar para as borras do pior café que bebi este milénio, disse-me ser uma tradição Tártara ler a sina nas ditas borras do café. Foi a deixa perfeita para uma das minhas típicas piadas que saiu sob a forma de “I saw it in Harry Potter”, ao que ela respondeu com um brutal “Hey jackass, do I look like Trelawney to you ?”. Finda a troca de galhardetes, lá virou a chávena ao contrário e a leitura que fez deixou-me literalmente de queixos no chão, sim, ainda mais do que a cor dos seus olhos.

Estiveram cá três dias. Foram às ilhas, conheceram a baixa de Olhão, apaixonaram-se pelos gelados da Gelvi que disseram ser os melhores que já comeram. Ficaram extasiados por podermos comer uma posta gigante de espadarte por 12 euros e, na última noite fizeram uma birra monumental porque queriam comer carne, problema prontamente resolvido com uma ida a um rodízio. Depois de uma refeição com todos os requintes de alarvidade, em que a Asli devorou com uma sofreguidão que merecia prémio Nobel todos os pedaços de ananás grelhado que conseguiu (nunca tinha provado tal coisa), fomos ao Cantaloupe onde, ao som de Jazz, tivemos mais uma amena cavaqueira. Numa dada altura perguntei-lhes se tinham algum desejo especial para a última noite. O Tim, vergado a 6 ou 7 cervejas e a 1/3 de uma aguardente de medronho soltou um simples “I just want to be near the sea”, enquanto que a Asli, amaciada por 2 caipirinhas e outro 1/3 de aguardente de medronho saiu-se com um poético “I want something different, something magic”. Eu pelo meu lado, desperto por duas taças de vinho tinto e pelo 1/3 restante da aguardente, lembrei-me de citar o Harry no 6º filme da sua saga e proferi um confiante e decidido “then by all means, come along”.

Alugámos um barco onde entrámos, o Tim com um sorriso de delinquência infantil, a Asli com uma apreensão que oscilava entre o receio e a excitação. Um minuto depois vogávamos pela Ria Formosa à velocidade da aventura e só parámos na ilha da Armona. Eram 0h45. O motorista colou-se a nós, como era por demais previsível. Fomos a um bar que fica junto à praia e enquanto o Tim com um estoicismo admirável aturou o nosso motorista a explicar como perdeu uma carreira futebolística excelente para vir para Portugal ter com a mãe, eu e a Asli juntámo-nos a um grupo que, ao som de viola, ia cantando tudo o que havia para cantar. Depois das cantorias ainda houve tempo para um passeio pela praia, para molhar os pés, e, para numa ofensiva tão bem consertada que faria inveja a qualquer regimento de operações especiais, encharcar o motorista, o que foi bastante arriscado dado que ele tinha as chaves do barco. Antes de tudo terminar, a Asli ainda me chamou à parte e durante meia hora soltou toda a sua perspicácia e terminou a conversa da leitura da sina da noite anterior, conversa essa que corre o risco de se tornar numa das mais emblemáticas e importantes dos últimos tempos.

Voltámos para Olhão já as 4h00 tinham passado. O Tim mais adormecido que acordado, a Asli mais confiante no barco, mas ainda assim a cravar-me as unhas no ombro cada vez que havia uma guinada ou rasgávamos alguma onda.

No dia seguinte foram embora. Deixaram atrás um rasto de risos e gargalhadas, conversas e bons momentos. Só me pediram que lhes arranjasse dormida por três dias, em troca ofereceram-me muito mais do que isso. O “meu” Americano de 2,05m lá foi com a Europa dentro da cabeça. A “minha” Turco-Tártara, essa continuará com o Mundo entre os seus olhos verdes hipnotizantes.

Como balanço, fica a certeza que fiz dois amigos, e, como canta o Sérgio Godinho, “coisa mais preciosa no mundo não há”.

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