Colunas de Hércules II – O regresso


São 18h15. Soltam-se as amarras. O som dos motores em crescendo não engana, três horas depois vai iniciar a viagem de regresso à Europa. Passamos lentamente por um torreão ainda dentro do porto de Ceuta, e, à saída desse mesmo porto, uma estátua de Hércules a empurrar duas colunas com os ombros despede-se de nós e deseja-nos boa viagem. Para trás fica Ceuta, já toda iluminada pelas luzes nocturnas. À frente fica Gibraltar, ainda longe da vista mas já entranhada no pensamento.



São 18h30. O meu plano inicial de ver o pôr do sol no barco a meio do estreito saiu furado. A noite aproxima-se rapidamente e, apesar de não ser um choque para mim descobrir que a Terra não alterou a sua velocidade de rotação para ceder aos meus caprichos, confesso que fiquei um pouco triste.


São 18h35. O vento e o frio são cortantes. O casaco ficou no carro em Algeciras de maneira que a camisa azul é a minha única linha de defesa contra uma temperatura que já é inferior a 10º C. O frio causa uma dor de certa forma libertadora. Os músculos contraem e o corpo treme, os pêlos eriçam e a pele fica arroxeada. Ainda há 40 minutos de viagem pela frente mas a vontade de me render ao canto das sereias, que desde os tempos de Ulisses se transformaram em poltronas confortáveis, reclináveis e climatizadas, não é nenhuma. Passeio pelo convés superior contando as luzes distantes dos navios e sorrio ao compreender a pulsão irresistível que tantos dos meus antepassados sentiram pelo mar.


São 18h45. Enrolo-me à frente da chaminé que vem directamente da casa das máquinas. Sinto nas costas o bafo quente que vem do motor que empurra o barco de regresso à Europa. Se a dor causada pelo frio é libertadora, este calor que me invade os poros é redentor. Finalmente encontrei um aliado para a minha luta contra a tentação de me recolher ao interior.


São 18h50. Atropelado pelo frio que vem de frente e aconchegado pelo bafo quente que vem de trás fecho os olhos com a sensação que o meu corpo se transformou num campo de batalha entre dois inimigos irreconciliáveis. É aqui que a noite me encontra.


São 19h20. Abro os olhos. A noite caiu e olha de forma arrogante para o barco que segue imperturbável o seu rumo. Sobre mim há um céu abobado de estrelas, entre as quais a “minha” constelação, Orion. Abandono a minha fortaleza à procura de ar livre de monóxido de carbono e entrego-me desprotegido ao frio. “O Rochedo” está ao meu lado direito e em frente as luzes do porto de Algeciras indicam a proximidade do destino final. Volto para o meu refúgio térmico. Está quase. Voltarei a pisar solo europeu em breve.


São 19h30. Depois de uma sedutora aproximação, barco e cais encontram-se num breve e fugaz carinho. Vou sair. Gibraltar espera-me.

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