Esta manhã estive em arrumações. Lá me decidi a levantar do sofá e como as dores de cabeça estavam mais fracas, achei que era boa ideia aproveitar a minha quarentena para fazer algo de útil. Vazei mais dois caixotes de livros que fui arrumando no espaço ainda vazio da minha estante. Com a primeira correu tudo bem. Ao iniciar a segunda a dor de cabeça e as dores musculares resolveram avisar que estava a passar das marcas. Mesmo assim ignorei-as. Quero lá saber que o corpo doa, a vontade é quem manda neste reino que se convencionou chamar de Sérgio Nicolae. Eis então que a minha fisiologia resolve lançar no campo de batalha um aliado fortíssimo. Foi "O diário de um mago" de Paulo Coelho. Esse livro foi talvez a única coisa que gostei de ler dele e, ainda por cima foi-me oferecido pela minha querida madrinha Cândida Lucas há muitos anos atrás, numa fase em que cedi ao meu "lado negro".
Com o livro, gasto pelo tempo e sujo pelo uso, nas mãos não tive outra alternativa. Sentei-me no sofá a recordar a primeira vez que o li. Foi instantâneo. As recordações voltaram, primeiro ao leve, quase como se me tivessem a acarinhar. Depois com um crescendo de intensidade e por fim avassaladoras a espancarem-me os sentidos e a invadir todos os poros da memória. Quando dei por ela, duas lágrimas escorriam à procura uma da outra, sabendo no entanto que nunca se encontrariam.
Foram quase dois anos muito duros, os mais duros da minha vida. Nunca estive tão perto de me perder nem nunca tive tantos que me quiseram segurar. Hoje recordo tudo isso com carinho, ternura e com um incomensurável agradecimento. Aprendi a lição e, mais importante do que qualquer outra experiência, esta ensinou-me que quando tudo está a correr mal, os amigos são a última fortaleza, o último castelo, o único recurso. Sim, fui salvo de males maiores única e exclusivamente porque houve pessoas que, mesmo contra a minha vontade, não me deixaram cair. É desse tempo que vem a minha humildade. Vem daí esta minha consciência que a vida nos eleva e nos faz cair com a mesma facilidade, que nunca podemos estar certos do que temos, que quando deixamos de lutar mais cedo ou mais tarde caímos. E quando caímos é bom que tenhamos à nossa volta pessoas que nos amparem, é bom que reconheçamos que há mais vergonha no silêncio do que no pedido de ajuda, é fundamental que compreendamos que há pessoas que estendem a mão apenas porque gostam de nós e não por estarem à espera de uma gorjeta ou de uma medalha. É desse tempo que vem o meu orgulho. Um orgulho maior do que o que estão habituados. Um orgulho que não é daqueles mesquinhos e infantis que levam as pessoas a não ser capazes de assumir erros ou pedir desculpas, mas um orgulho alicerçado na crença de que quando reparamos males que fazemos, quando reconhecemos erros e permitimo-nos a oportunidade de os corrigir, avançamos em direcção aos outros. E os outros são em regra muito mais tolerantes connosco do que nós próprios, os outros, em regra, apenas precisam de um pequeno sinal para continuarem a acompanhar-nos.
Enfim, dito tudo isto, vamos ao que verdadeiramente interessa. Deixo-vos uma passagem d'"O diário de um mago". Uma passagem que a mim fez muita diferença numa altura em que perguntava a mim próprio "qual o propósito de sobreviver à morte dos meus sonhos ?" Há sempre um propósito. Eu descobri-o. Boa sorte para vocês.
"O homem nunca pode parar de sonhar. O sonho é o alimento da alma, como a comida é o alimento do corpo. Muitas vezes, na nossa existência, vemos os nossos sonhos desfeitos e os nossos desejos frustrados, mas é preciso continuar a sonhar, senão a nossa alma morre e Ágape não penetra nela. Muito sangue já correu no campo diante dos teus olhos, e aí foram travadas algumas das batalhas mais cruéis da reconquista. Quem estava com a razão, ou com a verdade, não tem importância: o importante é saber que ambos os lados estavam a travar o Bom Combate.
O Bom Combate é aquele que é travado porque o nosso coração pede. Nas épocas heróicas, no tempo dos cavaleiros andantes, isso era fácil. Havia muita terra para conquistar e muita coisa para fazer. Hoje em dia, porém, o mundo mudou muito, e o Bom Combate foi transferido dos campos de batalha para dentro de nós mesmos.
O Bom Combate é aquele que é travado em nome dos nossos sonhos. Quando eles explodem dentro de nós com todo o seu vigor - na juventude - nós temos muita coragem, mas ainda não aprendemos a lutar. Depois de muito esforço, acabamos por aprender a lutar, e então já não temos a mesma coragem para combater. Por causa disso, voltamo-nos contra nós mesmos, e passamos a ser o nosso pior inimigo. Dizemos que os nossos sonhos eram infantis, difíceis de realizar, ou fruto do nossos desconhecimento das realidades da vida. Matamos os nossos sonhos porque temos medo de travar o Bom Combate.
- O primeiro sintoma de que estamos a matar os nossos sonhos é a falta de tempo - As pessoas mais ocupadas que conheci na minha vida tinham sempre tempo para tudo. As que nada faziam estavam sempre cansadas, não davam conta do pouco trabalho que precisavam realizar, e queixavam-se constantemente que o dia era curto demais. Na verdade elas tinham era medo de travar o Bom Combate.
O segundo sintoma da morte dos nossos sonhos são as nossas certezas. Porque não queremos olhar a vida como uma grande aventura a ser vivida, passamos a julgar-nos sábios, justos e correctos no pouco que pedimos da existência. Olhamos para além das muralhas do nosso dia-a-dia e ouvimos o ruído de lanças que se quebram, o cheiro de suor e de pólvora, as grandes quedas e os olhares sedentos de conquista dos guerreiros. Mas nunca percebemos a alegria, a imensa Alegria que está no coração de quem luta, porque para estes, não importa nem a vitória nem a derrota, importa apenas travar o Bom Combate.
Finalmente, o terceiro sintoma da morte dos nossos sonhos é a Paz. A vida passa a ser uma tarde de Domingo, sem nos pedir grandes coisas, e sem exigir mais do que queremos dar. Achamos que estamos maduros, deixamos de lado as fantasias da infância, e conseguimos a nossa realização pessoal e profissional. Ficamos surpreendidos quando alguém da nossa idade diz que quer ainda isto ou aquilo da vida. Mas na verdade, no íntimo do nosso coração, sabemos que o que aconteceu foi que renunciámos à luta pelos nossos sonhos, a travar o Bom Combate.
Quando renunciamos aos nossos sonhos e encontramos a paz temos um pequeno período de tranquilidade. Mas os sonhos mortos começam a apodrecer dentro de nós, e a infestar todo o ambiente em que vivemos. Começamos a tornar-nos cruéis com aqueles que nos cercam, e finalmente passamos a dirigir essa crueldade contra nós mesmos. Surgem as doenças e as psicoses. O que queríamos evitar no combate - a decepção e a derrota - passa a ser o único legado da nossa cobardia. E um belo dia, os sonhos mortos e apodrecidos tornam o ar difícil de respirar e passamos a desejar a morte, a morte que nos livre das nossas certezas, das nossas ocupações, e daquela terrível paz das tardes de Domingo"
Paulo Coelho
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