Foi a 8 de Maio de 1794. Não sei bem as horas nem os pormenores da situação mas calculo que tenha sido numa praça pública, e que a mesma estava cheia de gente, afinal há poucas situações tão mobilizadoras como um espectáculo de violência gratuito. Caminhou escoltado, o poder tem a infinita fraqueza de achar que tem que sujeitar a força as suas vítimas. Foi certamente apupado e insultado. As moles humanas têm o vigor dos covardes e só na sua miríade de indivíduos a pregar a acefalia a plenos pulmões conseguem pronunciar em público o que teriam asco de pensar em privado. Acarinho o pensamento de que se manteve hirto e íntegro até ao fim. Acalento a esperança de que tenha sorrido sarcasticamente quando lhe repetiram as acusações. Sim, elas foram repetidas. Mais uma vez, a tirania necessita de humilhar as suas vítimas antes de as destruir. É uma daquelas verdades insofismáveis, quem combate a razão é obrigado a ridicularizá-la porque sabe a priori que o tempo encarregar-se-á de repor a verdade.
Neste momento está deitado. O corpo tenso molda a tábua onde se deita, tábua essa, que em tempos, como parte de um carvalho, ou de um pinheiro, nunca sonhou terminar os seus dias como figurante de uma peça tão insidiosa. Os seus olhos são vendados. Pelo menos oferecem-lhe essa opção. Mais uma vez o meu carácter idealista obriga-me a acreditar que recusou essa espécie nojenta de sublimação da parte dos seus torcionários. Não ! Não aceitou ! Lavoisier fez questão de ver a lâmina afiada da estupidez a descer sobre o seu pescoço.
Foi no dia 8 de Maio de 1794. Um pedaço de ferro desceu, escravizado pela força da gravidade e controlado pelo poder arrogante de uns arautos de um pretenso mundo novo. Numa fracção de segundo uma cabeça separou-se de um corpo tornado inerte. Numa fracção de segundo a um dos cérebros mais brilhantes da humanidade foi sonegado o direito à vida.
Antoine Lavoisier é considerado por muitos como o pai da Química moderna. Durante a sua vida, reformulou a nomenclatura química, identificou e baptizou o oxigénio e o hidrogénio. Libertou-se da lei da morte ao postular a Lei da conservação da massa, segundo a qual, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma, uma das mais populares citações conhecidas, aplicada às mais variadas situações. Pelo caminho provou que a combustão dependia da presença de oxigénio e reduziu à insignificância teoria do Flogisténio. Rasgou autoestradas em direcção ao conhecimento da estequiometria e ensinou-nos que o diamante é uma forma cristalizada de Carbono.
Mas e se Lavoisier estivesse errado ? Pensemos por um momento que a famosa “nada se perde, nada se cria, tudo se transforma” não correspondesse à realidade. Vamos pensar em nós, nas nossas vidas, nas nossas experiências, nos nossos sonhos. Vamos gastar algumas sinapses cerebrais a imaginar o que seria se simplesmente nos recusássemos a aceitar ser meros espectadores de um processo contínuo e infindável de transformação. É verdade que todos os átomos que constituem as moléculas que formam o nosso corpo não se esgotarão com a nossa morte. Eles existem à tempos infindáveis e sobreviver-nos-ão. Eles são produto de combustões estelares e fazem de nós, em última análise, produtos de estrelas ha muito desaparecidas na imensidão do tempo cósmico.
Gosto no entanto de acreditar que somos mais do que o ajuntamento das entidades físicas que forma o nosso corpo. Nesse sentido, olhando para a nossa, ou pelo menos para a minha, vida consigo ver um ganho constante e sucessivo, algumas transformações, mas nenhuma perda. Olhando para trás com os meus olhos sempre mais implacáveis para mim do que para os outros, tenho muita dificuldade em identificar situações de perda. Continuo com uma espécie de arrogância juvenil que entende todas as experiências vividas como um ganho.
É verdade que já não tenho próximos amigos que me são queridos, é verdade que já não tenho vivas pessoas que me foram, e continuam a ser, fundamentais, é, dolorosamente verdade, que amores sentidos não passaram de promessas lindas de poemas numa vida cada vez mais escrita em prosa. Mas e depois ? Será que isso foi uma perda. Como posso ter perdido algo ou alguém que carrego na memória à distância de um pensamento ? Como poderá ter desaparecido alguém a quem recorro nos mais solitários momentos de introspecção ?
O mesmo se passa com os sonhos. Continuo a criar sonhos à medida das situações e das pessoas com quem me cruzo. Insisto em ver a cada faceta da vida o que pode vir a ser e não me consigo satisfazer com ver o, muito mais seguro, que é. Olhar para a realidade actual é esquecer que o tempo presente é convencionado ser de três segundos. Pensar no presente é abdicar de imaginar o que será o próximo parágrafo que escreverei daqui a três minutos.Eu sei que sou um optimista inveterado. Mas sei por que o sou, e isso é que para mim é importante.
Lavoisier mudou a Química, e de uma certa forma o mundo. Lavoisier associou a degradação dos metais à presença de oxigénio, e, em última análise, a lâmina que o matou enferrujou na presença do oxigénio que ele baptizou muito mais depressa do que as suas ideias foram esquecidas. Lavoisier caiu como mártir no altar sagrado da alarvidade mas não será jamais esquecido.
Eu, contudo, em mais um ataque de convencimento postulo que a lei da conservação da massa não se aplica à minha vida. Comigo, nada se perde, tudo se cria e, em caso de necessidade, algo se transforma.
E transformar-me-ei.
Obrigado Lavoisier.
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