Há dias estranhos. Estou a falar a sério, há dias em que quase nada faz sentido a não ser a certeza que o tempo vai continuar a passar e vai levar-nos para outro tempo qualquer. Ontem foi um desses dias.
Cheguei a casa sabendo que não ia lá ficar, saí sabendo que não tinha para onde ir. Como costume nestas situações, acabei nas margens da Ria Formosa. Subi do T à marina, desci no sentido inverso. Andei, dancei e nadei junto à Ria e, depois de um pôr do sol inebriante, decidi que era dia de me estragar com mimos. Fui a um restaurante Indiano cá do burgo e sentei-me na esplanada à espera de uma refeição.
Fui atendido por um Indiano simpático e porreiro. Depois de pedir a minha galinha grelhada com cebola e pimento recostei-me na cadeira a assistir à montagem dos festejos do S Pedro que se iam realizar no largo em frente à esplanada do restaurante.
Chega uma empregada morena com a minha taça de vinho e com uma cesta de pão de alho. Três dos seus dedos vão estrategicamente colocados dentro do cesto, com uma das suas unhas a roçar eroticamente numa das fatias. É óbvio que não vou comer isso, mas hoje também não estou com paciência para lhe esfregar o livro de reclamações no seu sorriso lindo.
Entretanto no largo, um tipo com um aspecto horrível faz testes de som. Coloca um CD do Quim Barreiros e, perante uma acéfala salva de aplausos, eleva o volume até ao expoente do desespero. Começa o meu inferno. Depois do inevitável snif no bacalhau da Maria, vem um gajo qualquer com voz de tuba desafinada a ameaçar lamber uma coisa qualquer a uma emigrante, espero que fosse o passaporte. De seguida continua com o Zé Cabra a explicar que deixou tudo por ela, incluindo a voz e a letra da música. Tudo é mau demais para ser real. Estou num filme do Fellini, produzido pelo João César Monteiro e com banda sonora do Zé Cabra.
Chega a comida. Talvez agora tudo melhore um pouco. Mas não, este foi apenas mais um dos meus pensamentos imbecilmente optimistas. Três putos invadem o espaço nas suas bicicletas a tocar vuvuzelas ao ritmo do desvario. Juntos, com a música pimba por trás, soam a uma manada de rinocerontes fêmea com cio a ser violadas por uma matilha de caniches maníaco-depressivos. Fui barbaramente extirpado da minha terra natal e enxertado no sétimo círculo do inferno. Devoro a comida à velocidade dos movimentos peristálticos do meu esófago e chamo a morena para recolher o muito que sobrou e para me trazer um café para que possa fugir para longe. No auge da sua boa vontade ela recolhe a travessa do frango, bem como a do arroz que transporta num ângulo de fazer corar de vergonha a torre de Pisa e deixa atrás de si um rasto que torna a experiência de Hensel e Gretel numa pífia tentativa de cartografar um caminho. Volta. Segura o cesto do pão intocado e ao tentar agarrar o copo de vinho quase cheio com as suas garras disformes, entorna-o na mesa e por cima de mim. Ao som da mais medonha pimbalhada e dos três putos a guinchar como se fossem anjos do apocalipse deito-lhe um olhar de puro ódio, temperado por ira e polvilhado por bocadinhos de raiva assassina. Consigo balbuciar um “não se preocupe, azares acontecem” que soa a “oh sua burra de merda, desaparece-me da frente antes que te foda o focinho à biqueirada”. Afasta-se. Enquanto sinto a tensão arterial a entrar na ionosfera, volto a concentrar-me no espetáculo Dantesco que se desenrola no largo.
Entretanto algo muda. Um dos javardos atrapalha-se, a bicicleta foge ao controle da sua vontade, dança em desequilíbrio e ambos se espalham no espaço residual entre duas mesas. Nunca saberei descrever a beleza ergonómica daquele movimento, nunca serei capaz de citar uma lei física que explique como ele deu origem à sequência infindável de ocorrências que se seguiram, como se uma peça de dominó empurrasse inexoravelmente as restantes em direcção à eternidade.
A bicicleta estatela-se, o puto cai, a vuvuzela voa, as mesas tremem. Numa delas a mesa de mistura dança mal humorada como se de um protesto laboral se tratasse, o leitor de CDs, esse, entrega-se à inevitabilidade da força gravítica e beija a calçada num estertor de paixão e de morte. Na mesa do lado uma pilha de CDs mergulha quixotescamente em direcção ao instrumento que estava preparado para lhes dar sentido. O puto está no chão. Tem por cima a bicicleta, bem como uma miríade de CDs, que num strip tease final se despiram das suas capas de plástico, por baixo está o leitor, agora reduzido ao silêncio. Num dos cantos do largo, levanta-se uma mulher que não tem mais de 40 anos e não aparenta menos de 60. Desloca-se com a graciosidade de uma retroescavadora e, ao chegar junto do puto choroso, aplica-lhe com a precisão cirúrgica de uma motosserra um par de bofetadas que, se houvesse justiça neste país, seriam classificadas pelo IPPAR como património cultural. Ao mesmo tempo, do mesmo local, levanta-se uma velhota com idade para ser tia-avó do Matusalém e desata a xingar os outros dois putos num idioma incompreensível para quaisquer ouvidos humanos.
A mãe berra, a velha rosna, o dono da aparelhagem lamenta-se, os ranhosos dos putos choram. Eu, bem, eu rio interiormente com uma alarvidade sádica. O leitor de CDs calou-se, as vuvuzelas foram sonoramente exiladas, os putos foram chorar para o beco. Chega o meu café ao mesmo tempo que o homem do som se rende às evidências e liga o rádio. Ouço a parte final do “have you seen my baby” dos Rolling Stones, de seguida sou brindado pelo “Russians” do Sting e, enquanto fumo um cigarro que me sabe a redenção, o Tom Petty canta-me o “cuts you out”. Fui trazido de volta à realidade depois de uma travessia por um deserto de horrores.
Pago, despeço-me do Indiano simpático e da morena desastrada. Faço-me ao caminho que ainda vou andar quatro ou cinco quilómetros antes de voltar a casa. Vou alegre e sorridente, a vida acabou por me fazer justiça. Como diz o conhecido ditado popular, “uma vuvuzela toca direito por notas tortas”.
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e eu ke sempre pensei ke cenas dessa so aconteciam ao donald. tas com um azar de pato hehehe :)
gim disse...
29/6/10 12:25