Ressaca I

Se defini ontem o “vício” como a incapacidade de travar a presença de algo que nos dá prazer, então a “ressaca” só pode considerada como a reacção do corpo à falta de algo que lhe dá prazer. Bem, vou parar de brincar aos dicionários e passar directamente ao que interessa, não fumo há 27 horas.

Não me venham com as conversas do costume do género de “não penses no assunto”, “não contes as horas”, “tens que continuar”, já conheço essas deixas todas. Sim até mesmo eu já li, em dias de paragem cerebral, esses livrinhos de auto-ajuda que nos convencem que somos os melhores do mundo e que somos capazes de tudo. Quem os escreve só se esquece normalmente de explicar é que se precisamos de ser convencidos de que somos capazes de algo, então é porque na realidade não somos.

Largando a metafísica, a realidade é que esta porcaria custa como tudo. Ainda só passou um dia, ou seja, na travessia do deserto eu ainda estou na parte é que percebo que aquilo tem areia e é um bocadinho quente. O dia de ontem, depois do cigarro das 9h30, foi estranho. Tive a sorte de ter tido muito trabalho o que me ocupou bastante a cabeça mas senti logo falta da minha droga preferida. Percebi-o quando me levantei para ir onde sempre vou fumar e ao lá chegar é que aceitei a nova realidade. Andei a deambular pelos corredores da casa em busca de um motivo lógico para a decisão que tinha tomado, mas, com ou sem lógica, o meu corpinho vai passar a ser uma “smoke free zone”. Saí do serviço e fui andando a pé até à estação da CP e ao contrário de dias anteriores dispensei o banco onde me sento a fumar o cigarrito antes do comboio. Depois do jantar começou o verdadeiro inferno. O café e o tabaco amam-se como um hamburger e batatas fritas e por mais que me convença da justiça desta minha nova odisseia, acho que separar um amor destes é um pecado mortal. Já vi a realidade mas ainda resisto a aceitá-la, se quiser mesmo cortar com o tabaco, e quero, vou ter que enfiar o café no mesmo saco e despachá-lo para a gaveta das memórias, nem que seja temporariamente.

O dia hoje correu bem, pelo menos até chegar ao serviço e beber o café da manhã. Saí do bar a jogar a mão ao bolso em busca do maço, como o fiz inúmeras vezes mas a realidade mudou. Confesso que estou a aguentar bem, por mais que me queixe, mas também tenho a perfeita certeza que o pior está para vir. O que acho estranha é esta sensação de pairar sobre a realidade. Quando comecei a fumar há 11 anos atrás adorava o primeiro cigarro da manhã. Fumava-o e apanhava aquela tontura simpática como se andasse numa dimensão diferente. Agora a falta do tabaco coloca-me permanentemente nesse estado, o que é complicado para quem tem que se recordar de muitas coisas no trabalho.

Estou a entrar num estado de anestesia que me preocupa porque as minhas responsabilidades não se compadecem com erros que possam ser justificados com “nicotina shortage”. De qualquer forma, “a gente vai continuar” como canta o Jorge Palma. Tal como sempre fiz ao longo da vida, só prometo luta, nunca vitória. Mas tal como a vida também me ensinou, tenho hábito de ser melhor quando estou em baixo e, acreditem, não me estou a sentir nada capaz de aguentar esta luta contra o meu vício preferido. E é exactamente por não me sentir capaz que sei que desta vez tenho hipóteses reais de triunfar.

É complicado perceber ? Sim, eu sei que é, mas que hei-de eu fazer. Simples simples era comprar um maço e acabar com isto, mas desta vez abjuro a simplicidade.

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