Este texto foi escrito a 30 de Novembro, a data do 30º aniversário do The Wall. Por motivos que só o meu tradicional esquecimento poderá explicar ficou sem ser publicado até hoje.
Há uma relação engraçada entre o ano de 2009 e os muros. Festejámos há 3 semanas atrás o 20º aniversário da queda de um muro que foi, e é, símbolo de ignomínia e de cegueira ideológica. Um símbolo de um tempo em que metade do planeta queria destruir a outra metade, única e simplesmente porque ambas as partes tinham formas diferentes de entender a economia, a política e a sociedade.
Hoje, a 30 de Novembro, festeja-se outro aniversário associado a um muro muito diferente. Faz hoje exactamente 30 anos que foi lançado o The Wall dos Pink Floyd. Na minha modesta opinião, o melhor álbum de música alguma vez composto e gravado. O The Wall é muito mais do que um simples conjunto de músicas que aparecem associadas. Em The Wall há muito mais do que músicas que podiam ser ouvidas soltas e sem qualquer associação entre elas. Os Pink Floyd, durante o consulado do Roger Waters como seu líder e principal génio criativo sempre me fascinaram por isso. Nessa brilhante e eterna fase da sua existência, a unidade da sua criatividade era o álbum e não a música. Não os posso considerar musicalmente melhores em relação a outros monstros sagrados do que se convencionou chamar o “rock sinfónico”, foram apenas diferentes. Podemos ouvir uma música dos Queen, ou dos Dire Straits, U2, Police, entre tantos outros, e não ligar ao resto do álbum. Está lá tudo, a letra inspiradora, os acordes brilhantemente compostos e tocados, mas a música é em si o principio e o fim do processo criativo. O álbum é a soma das partes e o brilhantismo das partes faz o todo ser brilhante. Com os Pink Floyd de Roger Waters, a música é uma simples peça que, genial ou não, integra um todo que é muito mais do que a soma das suas partes.
The Wall é composto por 26 músicas. Nem todas conhecidas, nem todas geniais, algumas delas simplesmente normais, umas talvez até sofríveis. Mas o conjunto, esse, é um poderoso instrumento musical que ultrapassa os limites do que é entendido normalmente como um álbum de música. The Wall, no seu todo, é um tratado de Psicologia, um manifesto Sociológico, um guia prático sobre a destruição de uma personalidade. Nele, Roger Waters faz uma viagem introspectiva ao fundo dos seus medos e traumas, usa o seu exemplo para fazer uma analogia, perigosa por momentos, com a forma como é possível alguém auto-destruir-se e tornar-se num agente de hetero-destruição. Vou recapitular, desde o início. Acompanhem-me.
Tudo tem início com In the flesh. É simples, incrivelmente simples. Estamos num concerto em que o vocalista de uma banda canta uma simples música que termina com “If you wanna find out what's behind these cold eyes you'll just have to claw your way through this disguise.” Vamos ver o que esconde ele por trás do disfarce ? Vamos. Música seguinte, Thin Ice. A transição é feita ao som de um avião a despenhar-se. Representa a morte do pai de Roger Waters na 2ª guerra mundial, morte essa que ocorreu ainda antes do seu nascimento. É o momento fundador da sua vida, o 1º e o maior dos seus traumas. Depois do despenhamento e da morte, vem o choro do bebé, morte e nascimento, de braços dados em direcção ao futuro. A letra é terrivelmente premonitória, se te lanças numa vida pública terás sempre o olhar perscrutador de uma infinita multidão, o the thin ice of modern life não tem contemplações para traumas ou falhanços. Vales pelo que fazes e pela forma como ages. As desculpas, essas não contam, afundam-se nesse thin ice mais depressa do que as podes ver. Vem de seguida o 1º another brick in the wall. Mais uma vez a história biográfica do seu pai que atravessou o oceano e deixou para trás apenas memórias. Que oceano ? o que o levou para os campos de batalha de uma Europa dilacerada pela guerra, ou apenas o oceano mitológico que separa a vida da morte ? Daddy, what'd'ja leave behind for me?!? Nada, nada a não ser uma fotografia no álbum familiar. Com isto começam a ser colocados os primeiros tijolos na parede, uma parede veremos crescer e fortalecer, uma parede que veremos completa, mas isso mais para a frente. Por agora, basta saber a razão por que teve que ser construída. No início não passou de um trauma, depois veio tudo o resto. The Happiest Days of our Lives e Another Brick in the Wall Part 2 aparecem em conjunto. Uma viagem a um modelo de educação hoje ultrapassado mas que imperou durante décadas. A educação como um gigantesco elemento formatador da personalidade. A Escola como instrumento de redução dos alunos a meras amebas, como pequenas peças de um Taylorismo social. A destruição da criatividade, a imposição do denominador comum extraordinária e terrivelmente metaforizadas no filme com o mesmo nome do álbum por um gigantesco picador de carne em que os rostos individuais são substituídos por máscaras indistintas de criaturas cuja alma foi sacrificada por um pretenso bem comum. Não adianta gritar We don't need no education We dont need no thought control No dark sarcasm in the classroom Teachers leave them kids alone, a máquina tem que funcionar e, do trauma deste sistema educativo, mais tijolos são colocados num muro cada vez mais alto. De seguida vem Mother, agora deixamos as pressões sociais e voltamos para dentro de casa. À morte prematura do pai, à opressão do sistema educativo junta-se agora a super protecção materna. Todos os medos brotam na presença desta mãe super protectora que se torna também castradora. A todas as questões, sempre a mesma resposta Mama will keep baby cozy and warm, não sem que antes o impeça de voar, mas talvez o deixe cantar. A mãe como potenciadora de medos, como espécie de parasita que se alimenta de inseguranças sempre exacerbadas para manter junto de si o seu filhote. A mãe que vigiará sempre as suas namoradas, a mãe que passará os seus próprios traumas e medos para o filho, a mãe que tudo fará para que o seu filho não saia debaixo da sua asa. No fundo, uma mãe que não fará mais do que aumentar o muro porque, em última análise, isolando-o da sociedade e do mundo em geral, mais facilmente exercerá o seu controle. Depois vem Goodbye Blue Sky, mais um regresso ao passado e a um tempo em que a promessa de paz foi substituída por uma diária ameaça de guerra. Talvez uma recordação dos bombardeamentos nazis da 2ª guerra mundial, talvez um lamento de uma geração que nasceu e cresceu sob ameaça de uma guerra nuclear. Empty spaces é um pedido de ajuda. Como conseguirá ele completar os espaços ainda abertos no muro ? Será que o muro faz sentido ? Poucas dores há tão incisivas, poucas dúvidas há tão fortes como as que nos assaltam a meio de um caminho escolhido mas ainda não terminado. Estamos na transição para a idade adulta, estamos na procura e na descoberta do caminho e Young lust chega logo de seguida como premonição das relações futuras com o sexo oposto. Desta vez há uma procura que depressa se torna em desesperada necessidade de companhia. Estará no corpo de uma mulher a redenção para os traumas e inseguranças tão claramente manifestados ? Não !!! Chegamos logo depois a One of My Turns. O amor, ou pelo menos a sua procura desesperada torna-se em mais um peso, em mais um falhanço, em mais um trauma. No filme a cena é representada de forma absurdamente genial por Alan Scarfe em que uma dança de sedução termina com uma penetração metafórica em que um órgão masculino é devorado pelo feminino depois de acontecer. O predador torna-se presa. O homem na perseguição do seu desejo e da sua necessidade vira presa manipulada pelo objecto da sua sedução. O verdadeiro sexo fraco manifesta-se ao cair nessa eterna e atroz armadilha que cedo ou tarde faz dos homens instrumentos das suas mulheres, como antes o tinham sido das suas mães. Day after day, love turns grey Like the skin of a dying man. Night after night, we pretend its all right But I have grown older and You have grown colder and Nothing is very much fun any more. No fundo, são apenas mais tijolos para um muro cada vez mais alto. Nem no amor há redenção pois até já ele está conspurcado pelos jogos e estratégias de uma vida cada vez mais complexa. Já nem sequer o sonho de um amor puro e completo resiste, nada resiste à ditadura do dia-a-dia, nada sobrevive à atracção pelo poder que até numa relação amorosa vive sob a forma de saber quem é o mais forte, quem é que domina, quem é que manipula e gere a realidade. Da descoberta desta triste realidade vem o grito de revolta, do grito de revolta vem o ataque de raiva depressa aplacado por um Don't Leave Me Now. É a humilhação suprema. A súplica a alguém cuja presença é danosa para que regresse é um dos pontos mais baixos a que alguém pode chegar. O muro foi crescendo, o cerco está a fechar-se mas em última análise ainda há um pedido desesperado de companhia. Fica, não me deixes só, mesmo que me faças mal, a iniquidade da tua presença é preferível à solidão. É, se o podemos descrever assim, o grito de um corpo já sem alma para que alguém através da sua existência substitua a solidão por uma companhia tortuosa. O cerco está a fechar-se e já nem interessa se a presença de alguém vai fazer bem ou mal, o que interessa é a necessidade da presença de alguém. Mas ainda não terminou. Não há salvação para quem suplica companhia. A súplica é sinal de fraqueza e, em relações entre sexos, a fraqueza cheira-se à distância. Vem o último another brick in the wall. Depois de tudo ter falhado, depois do trauma do desaparecimento prematuro do pai, da opressão do sistema educativo, da super protecção castradora da mãe, dos relacionamentos amorosos falhados, o muro que cresceu, tornou-se imponente. Já não há braços ou abraços que salvem, já não há drogas que acalmem, há apenas tijolos. Mais tijolos, cada vez mais empilhados, cada vez mais enterrados numa alma que já só existe para se auto-destruir. Good bye cruel world. Este é o momento do isolamento. Já não há nada que digam ou façam, o muro está completo. O isolamento em relação aos outros finalizou, há agora uma imensa e enorme muralha que nos separa de tudo o resto, há agora uma defesa impenetrável à influência dos outros. Metade do caminho está trilhada, agora seguimos por um itinerário por cartografar. Agora, com esta estrutura defensiva à nossa volta podemos ter a certeza de que não seremos ameaçados, que não seremos tentados a imaginar uma vida em que os outros façam de facto parte dela. Somos finalmente senhores do nosso destino, mas a que custo ? Sabê-lo-emos de seguida.
O segundo CD inicia com Hey You. É uma espécie de ressaca. Finalizado o muro, consumada a separação a que o individuo se votou em relação aos outros, aparece agora uma estranha tentativa de comunicação com o exterior mas com resultado mais do que previsível. But it was only fantasy.The wall was too high, As you can see.No matter how he tried, He could not break free.And the worms ate into his brain. O muro está muito alto e já nada passa, há no entanto ainda um novo pedido de Socorro em Is there anybody out there, novamente sem resposta. Quem constrói muros tem que aprender que por muito que defendam no início, cedo ou tarde acabam por isolar. Quem vive obcecado em defender-se de tudo e de todos, termina afastado desse tudo e desses todos que podem de facto fazer com que a vida mereça ser vivida. Is there anybody out there termina com um solo de viola de David Gilmour e, ao som de comerciais de TV entramos em Nobody home. Agora é a fase da auto-comiseração. Vemos o indivíduo na fase de sentir pena de si próprio. No filme a cena é representada por ele sentado em frente de uma TV enquanto a letra vai vomitando todo o seu longo currículo de qualidades que deveriam fazer com que qualquer outra pessoa se quisesse dele aproximar, mas a realidade continua a ser que com um muro à volta, nenhuma aproximação é possível. A música termina com When I try to get through On the telephone to you There'll be nobody home. Fica o lamento. Quando tenta telefonar, ninguém está em casa. É o lamento dos covardes, fazer o mínimo para poder justificar que fez e, não funcionando, a culpa é dos outros, os que não têm muros à sua volta. Construído o muro, falhadas as tentativas inócuas de sair dele ainda a tempo, caminhamos agora a passos largos para os capítulos finais. Vera é mais uma reminiscência da 2ª guerra mundial. A alusão a Vera Lynn, a cantora inglesa que cantava aos soldados “We will meet again” e na sequência dessa música “Bring the boys back home” trazem outra vez para o centro das atenções o trauma no qual toda a personalidade de Roger Waters foi alicerçada, a morte trágica do seu pai. Estamos agora prontos para mergulhar em Confortably Numb, a mais perturbante e envolvente música do álbum. Nela tudo se mistura, o passado e o presente, a dor e a mágoa, o medo e a solidão. Assistimos a um diálogo entre alguém que finalmente apareceu para tentar salvar os restos de uma personalidade torturada e o indivíduo que fala num tom já incompreensível, e apenas para se recordar de episódios antigos dos tempos de criança em que o muro não era ainda um destino. The child is grown, The dream is gone .I have become comfortably numb. A criança cresceu, os sonhos morreram, já nada há que possa ou mereça ser salvo. Ao som de um dos mais memoráveis solos de guitarra que a história da música conheceu, termina finalmente a destruição do indivíduo. Fechar-se num muro para se afastar do mundo não chegou, não chega. Faltava ainda o resto. Faltava passar de oprimido a opressor, faltava passar de vítima da destruição da sua personalidade em agente de destruição de uma sociedade que renegou e da qual se isolou. The show must go on não passa de um breve momento de calma antes da tempestade, como se tratasse de uma inspiração forçada antes de um mergulho. In the flesh está de volta. Regressamos ao início mas desta vez sabemos tudo o que aconteceu. O concerto tem que continuar mas apercebemo-nos facilmente que já não estamos num concerto de música mas sim num comício. A letra de In the flesh é claramente panfletária e representa o asco com que as asquerosas ideologias de extrema direita vêem o mundo. Está lá tudo, o ódio racial, a perseguição religiosa, a homofobia primária. If I had my way, I'd have all of you shot! Se ele pudesse matava-os a todos, no entanto, não sem antes lançar ao vento uma última ameaça. Run like hell é mais uma peça de ódio contra tudo. Corram, fujam para onde puderem porque uma nova força está na rua e vai destruir tudo e todos os que se lhe opuserem. Já não há dúvidas nem medos, inseguranças ou fraquezas, há apenas um ódio visceral e uma raiva assassina contra uma sociedade que passou de opressora a objecto de opressão. É assim que entramos em Waiting for the worms, a apoteose da loucura. É a marcha triunfal dos vermes ao som de acordes militares. Todo o discurso reflecte o ódio e o desprezo pelos outros, por todos os outros, pelos que não pensam da mesma forma. É um discurso político assente nas mesmas ideias tão caras ao extremos do espectro político. O discurso da moralização, da limpeza racial, do ódio aos imigrantes, do racismo acéfalo. O discurso da pretensa pureza de quem o profere e não aceita sequer a existência de formas de pensar diferentes. A marcha triunfal prossegue vomitando as alarvidades dos vermes mas subitamente aparecem vozes de contestação. Inicialmente tímidas mas em crescendo tornam-se ensurdecedoras ao ponto de abafar o próprio verme no seu palanque. Tudo termina com um desesperado grito de STOP que faz a transição para a próxima música com o mesmo nome. A antiga vítima transformada agora em carrasco lança-se numa cela onde apenas pede para ir para casa e para saber se durante todo esse tempo foi verdadeiramente culpado. Estamos a chegar a The trial, o último capítulo, o fechar da cortina. The trial é o final lógico e esperado do álbum, com Roger Waters a ultrapassar os limites do possível, é uma peça musical inadjectivável com uma orquestra conduzida por Michael Kamen como pano de fundo. The trial é como o nome indica, o julgamento do indivíduo, toda a sua vida é passada em revista, todas as principais personagens regressam. É necessário descobrir se ele é ou não culpado por ter construído o muro, é fundamental saber se há ou não perdão para quem se isola da sociedade, é imperioso descobrir como se pode punir alguém que escolha esse caminho. O julgamento inicia com o promotor público a considerar indesculpável que o réu se atreva a demonstrar sentimentos e abre depois caminho ao professor. Esse vem a tribunal lamentar-se de não ter podido ir mais longe na educação porque os bleeding hearts and artists estavam sempre a defender os direitos das criancinhas selvagens. Há uma pequena pausa para um depoimento do réu completamente desfasado da realidade que segue presente ao seu lado e depois voltamos com mais dois depoimentos. Desta vez aparece a esposa também a lamentar-se da falta de diálogo e da distância que o réu cavou na sua relação e, para terminar, quem não senão a mãe a repetir o eterno discurso da super protecção que tentou dar para que ele não se metesse em apuros. The trial é a maior hipocrisia alguma vez cantada, é uma espécie de inversão do ónus da prova em que vemos os causadores da fuga e do isolamento do indivíduo a carpir as suas lágrimas de crocodilo numa esperança desesperada de se redimirem dos seus erros, mas ainda não acabou, falta o juiz. Num segundo depoimento o réu já declara abertamente a sua loucura e pergunta apenas pela porta por onde entrou para dentro do muro, de pouco serve, a decisão final do juiz é firme e inapelável. Depois de todos os depoimentos ouvidos, não há dúvida, o réu merece a pena máxima possível e, dado que manifestou o seu maior medo, é condenado a ter que viver entre os seus semelhantes. O muro tem que ser destruído urra selvaticamente o juiz acompanhado por um coro gigantesco de vozes anónimas. Falta ainda o epílogo, Outside the wall. Uma mensagem final de amor e confiança. Por muito altos que sejam os muros, por muito que queiram fugir ou isolar-se, do lado de fora existirão sempre pessoas para quem o seu amor chega para desafiar o frio da rocha e para, mesmo com sofrimento envolvido, tentar demolir essas ridículas barreiras criadoras de solidão.
All alone, or in two's,The ones who really love you Walk up and down outside the wall. Some hand in hand And some gathered together in bands.The bleeding hearts and artists Make their stand. And when they've given you their all Some stagger and fall, after all it's not easy Banging your heart against some mad bugger's wall.
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Não o diria melhor! Sem dúvida que The Wall é o álbum do século passado - uma obra prima musical - por todos os motivos que mencionaste. Foi um álbum que me acompanhou durante toda a adolescência e ainda me acompanha. Sempre tive um especial carinho por "Hey you", como já deves ter percebido!
Unknown disse...
26/6/10 22:50